Histórias Soltas Presas Dentro de Mim

Wilkerson, Charmaine (2022). Bolo Negro. Porto: Porto Editora.

Tradução: Carla Ribeiro

Nº de páginas: 404

Início da leitura: 21/11/2022

Fim da leitura: 26/11/2022

**SINOPSE**

"Conta uma história tão intensa quanto deliciosa. - Taylor Jenkins Reid
Os irmãos Byron e Benedetta não se veem há oito anos, mas a súbita morte da mãe obriga-os sentarem-se finalmente à mesma mesa. Eleanor deixou-lhes um bolo no congelador com a críptica instrução de que o deverão partilhar «na altura certa».
Para além do bolo, uma homenagem às origens caribenhas da família, há ainda uma longa gravação áudio que abre com uma revelação impensável: Byron e Benedetta têm uma irmã.
Este, porém, é apenas o primeiro dos muitos segredos que a mãe quer agora, depois de morta, revelar, na esperança de emendar alguns erros do passado.
Nesta estreia surpreendentemente madura, Charmaine Wilkerson explora com fina sensibilidade as questões difíceis da identidade pessoal e social, numa saga familiar intensa, que cruza o tempo e a geografia, fazendo-nos acreditar que é sempre possível regressar a casa.
Bestseller do New York Times em adaptação para a televisão por Oprah Winfrey"
Uma boa estreia da escritora. Este é um drama forte e envolvente e que, apesar de, no início, parecer um pouco confuso pela quantidade de personagens e pela alternância entre vários momentos temporais e personagens, acaba por nos envolver.
Nem sempre o que parece é e os segredos acompanham Eleanor até à sua morte. Os filhos, Benny e Byron, só verão desvendados os segredos da mãe, após a sua morte, através de uma gravação áudio que deixou com o seu advogado. E é precisamente este acontecimento que volta a juntar os irmãos, antes inseparáveis, que viveram os últimos anos tão afastados. Mas é também esse acontecimento que vem desvendar muitos segredos guardados por esta mulher. As personagens são muito verosímeis, com virtudes e defeitos, o que lhes confere credibilidade. É o bolo negro, que passou de geração em geração, que volta a juntar os irmãos.
De salientar também toda a relação da família com o mar, através do surf; a questão do preconceito social em relação aos negros; a questão das crianças dadas para adoção; a orientação sexual (nem sempre fácil de aceitar pelos pais); os conflitos geracionais; as tradições; o multiculturalismo...Tem todos os ingredientes para uma boa história. É excecional? Não, apenas boa. Pelo menos na minha ótica.
Aconselho a quem gosta de um bom drama familiar!

García-Márquez, Gabriel (1995). Crónica de uma Morte Anunciada. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 4ªed.

Tradução: Fernando Assis Pacheco

Nº de páginas: 112

Início da leitura: 19/11/2022

Fim da leitura: 20/11/2022

**SINOPSE**

"Vítima da denúncia falaciosa de uma mulher repudiada na noite de núpcias, o jovem Santiago Nasar foi condenado à morte pelos irmãos da sua hipotética amante, como forma de vingar publicamente a sua honra ultrajada e sob o olhar cúmplice ou impotente da população expectante de uma aldeia colombiana: é esta a história verídica que serve de base a este romance, e que, logo nas suas primeiras linhas, é enunciada.

A capacidade de Gabriel García Márquez em reconstruir um universo possuído pela nostalgia, mágica e encantatória da infância e a sua genial mestria em contar histórias fazem deste romance mais uma das obras-primas que consagraram definitivamente este autor."
Este autor colombiano também não engana, escrevia muito bem, o que lhe valeu o Prémio Nobel em 1982. A 1ª edição deste livro saiu em 1981.
Uma história verídica serve de base a esta obra, muito bem ficcionada pelo autor que era, sem dúvida, um excelente contador de histórias. 
É um livro pequeno (daí o ter intitulado de "Crónica"), que se lê num ápice, e que nos conta os meandros de uma morte anunciada: a de Santiago Nasar. Uma morte que poderia ter sido evitada, se as pessoas da vila a quem tinha sido dada a conhecer a intenção de matarem Nasar ou as premonições sentidas, tivessem sido levadas a sério. Parece que, mesmo que tenham acreditado nessa possibilidade, não o conseguiam evitar e nada fizeram para que tal não acontecesse, como se algo as prendesse à decisão tomada e anunciada. E é precisamente a necessidade de saber como mataram Nasar, o enredo em si, e não tanto quem matou e porquê, que isso nos é dito logo no início, ou o clímax da ação com a morte de Nasar, que nos aguça a curiosidade e nos prende à narrativa.
Há mortes que se fazem anunciar, como se estivessem predestinadas...

Aconselho a leitura!

Figueiredo, Isabela (2022). Um Cão no Meio do Caminho. Lisboa: Editorial Caminho.

Nº de páginas: 296

Início da leitura: 18/11/2022

Fim da leitura: 19/11/2022

**SINOPSE**

"Este novo romance de Isabela Figueiredo, a que ela deu o sugestivo e justificado título de Um Cão no Meio do Caminho, conta-nos as histórias de um homem e de uma mulher que sofrem, cada um à sua maneira, um dos grandes males da vida moderna - a solidão.

Neles a solidão é a resposta aos violentos acidentes com que a vida os agrediu. As sociedades modernas vivem sobre a violência. Mas há quem a recuse, como é aqui o caso de José Viriato e da sua misteriosa vizinha, Beatriz, que todos conhecem como a Matadora. O acaso junta-os, como o leitor verificará com a leitura deste livro.

Que resultado obtemos quando se juntam duas solidões? É esta a questão que este novo romance da autora do aclamado A Gorda vem equacionar, deixando a resposta ao critério de cada leitor. Eventualmente um cão pode ajudar."
Que livro tão, mas tão bom! Se já tinha gostado de A Gorda, este correspondeu e ultrapassou quaisquer expetativas criadas. 
Primeiro: as canções sugeridas na ficha técnica para nos acompanharem durante a leitura enquanto "som ambiente" são, já de si, uma excelente companhia e um estímulo à leitura. A música tem o poder de me ajudar a relaxar, a descontrair, criando, assim, o ambiente ideal à concentração na leitura.
Segundo: a abertura da narrativa: "O futuro não está escrito (...) O futuro está em aberto até à sua revelação, cujo calendário desconheço. A surpresa é que nos catapulta para o passo seguinte. Um encontro inesperado, um acidente, uma história…"
Terceiro: duas personagens riquíssimas: a vizinha do narrador, que prende a sua solidão à dele quando lhe conta o seu caso de amor decorrido "há muito tempo", que é uma mulher solitária, uma acumuladora de lixo, lixo esse que são as suas recordações, especialmente da mãe, junto com as fotos que tirou e que continua a tirar, que guarda religiosamente, tudo muito organizado, em caixas. As histórias "fortes" dela, do seu passado, que ele escuta com interesse, porque "gostava de uma boa história". Depois, temos o narrador, um homem igualmente solitário, por opção, que vive apenas com os seus cães e que, durante a noite, vasculha os contentores do lixo à procura de "coisas" que possa vender. Enquanto nos é descrito o dia a dia destas personagens, vamos (re)conhecendo as ruas da Margem Sul, de 2019.
Quarto: a narrativa é magnífica. O passado é recuperado através de analepses, através de conversas entre estas duas personagens, uma vez que "A memória de cada um é o seu bilhete de identidade íntimo": os dramas familiares do narrador, o divórcio dos pais, a entrega da mãe ao álcool, o resgate de "um cão no meio do caminho", a morte da mãe, a mudança para casa da avó, o seu amor pelos animais, a necessidade de ser livre… são muitas as recordações. Também aqui surge a perspetiva histórica sobre a cidade da sua infância: a visão crítica dos "de cá" em relação aos "retornados" (que o ajudaram a resgatar o cão ferido, a quem chamou, mais tarde, Cristo), como "os que têm o rei na barriga", "uns vândalos", enxotados pelos vizinhos...
Quinto: a elegância da linguagem, a oralidade das "gentes" que nos vão sendo descritas, sempre sem momentos mortos, adensando o interesse do leitor a cada passagem.
Poderia continuar a enumerar qualidades, que são muitas, mas não quero adiantar mais sobre este magnífico livro.
Um livro que não pode mesmo deixar de ler!

Cachapa, Possidónio (2019). A Vida Sonhada das Boas Esposas. Lisboa: Companhia das Letras.

Nº de páginas: 240

Início da leitura: 15/11/2022

Fim da leitura: 17/11/2022

**SINOPSE**

"Madalena viveu, durante décadas, uma vida exclusivamente dedicada a um marido que nunca a amou, à casa que não escolheu e aos filhos que pouco se importavam com ela. A morte Súbita do marido e o segredo que lhe foi desvendado levam-na a embarcar num navio de cruzeiro, o que vai alterar a sua perspetiva de vida e o olhar sobre si própria. A par das amigas hilariantes de carne e osso, as personagens dos romances de Corín Tellado ou Emily Brontë saltam das prateleiras para lhe assombrar os sonhos e fazer questionar o seu direito a ser, finalmente, livre. O encontro com um galã hiper-romântico, semelhante aos dos livros que a tinham feito sonhar, e um tsunami muito real colocarão definitivamente em causa a possibilidade de voltar a ocupar o lugar de viúva recatada e submissa a que parecia condenada."

Mais um autor que estou a descobrir e de quem, com certeza, lerei outros títulos. É um livro leve, divertido, mas bem escrito e com grande criatividade na forma como o autor introduz na narrativa os livros que assaltam os sonhos da protagonista. Além disso, coloca-nos questões importantes: quem era eu na infância? De que gostava? Continuo a ser a mesma ou anulei a minha personalidade? Estas e outras questões são feitas pela protagonista a si própria e acredito que poderiam ser respondidas por muito mais mulheres de carne e osso. 

Desta forma, aliam-se nesta ficção personagens com que nos cruzamos no dia a dia,  personagens ficcionais de outros livros e, ainda, personagens improváveis. 

Temos uma filha que, infelizmente, representa muitos filhos, na realidade: pouco importada com o que a mãe sente e quer, convenceu a mãe a ter a sua conta bancária em conjunto com ela e considera, dá-se ao direito de lhe cancelar o acesso à conta, considera que a mãe  deveria ser uma devota viúva, pensar mais nos netos...Mas não teria o direito de ser livre, de viver a vida que lhe fora negada todos os anos em que fora casada e até filha? Já o filho, tem uma outra perspetiva, mas isso deixo para que saibam através da leitura do livro. Isso e muitos outros pormenores!

Aconselho!

Gardeazabal, José (2021). Quarentena: Uma História de Amor. Lisboa: Companhia das Letras.

Nº de páginas: 208

Início da leitura: 12/11/2022

Fim da leitura: 15/11/2022

**SINOPSE**

"Um casal, decidido a separar-se e de malas feitas, é obrigado pelas autoridades de saúde a uma quarentena. O seu apartamento transforma se numa arena de proximidade física e distâncias calculadas, onde os restos da vida amorosa e o trautear televisivo de uma pandemia mudam o mundo por dentro e por fora.

Ali, sob o regime forçado de uma intimidade perdida, percebemos como, entre antigos amantes, vizinhos e desconhecidos, a saudade das multidões e dos sentimentos sempre estiveram à altura de nos resgatar do peso do presente.

Um olhar provocador sobre uma experiência coletiva.
Uma introspeção inesperada, à porta fechada, sobre o que é o amor, onde começa, acaba e recomeça.

Uma história de amor em 40 dias."

Ainda não tinha lido nada do autor português, que desconhecia. Quando vi o livro, chamou-me a atenção, mas o facto de o tema se centrar na pandemia, deixava-me sempre reticente. Quando vi que ganhou, em 2016, o Prémio INCM/Vasco Graça Moura e que, em 2018, foi finalista do Prémio Oceanos, decidi-me à leitura. Entretanto, já comecei a pesquisar outros livros do autor para ler.
Gostei da forma como escreve e, apesar de o tema ser um pouco penoso para quem vivenciou e se ressentiu com esta pandemia por COVID19, a forma como Gardeazabal o aborda, capta-nos a atenção. É uma espécie de história de amor invertida, uma vez que o casal, quando decide separar-se, vê-se obrigado a fazer a quarentena em casa, o que impede a separação imediata. E esta permanência em casa, este confinamento, separados pelo muro de "papel higiénico" que colocaram a dividir a sala, leva o protagonista a várias reflexões, não só em termos pessoais, mas também sociais e políticos. 
Confesso que gostei mais da parte inicial e final, pois considero que, pelo meio, se perde um pouco em divagações. Mas, no seu todo, é uma obra bem escrita, com uma linguagem cuidada. Deixo algumas passagens que assinalei:
"...a morte não tem conteúdo, pensamos nela, na melhor das hipóteses, como uma linha reta no céu, acima do horizonte,"
"A paciência é o tempo com pessoas dentro..."
"O tempo é invisível, é o contrário do espaço. O espaço entra-nos pelos olhos dentro."
"A paz é um eufemismo do fim. Na guerra ansiamos pelo fim, não pela paz."

Antunes, António Lobo (2022). O Tamanho do Mundo. Alfragide: Publicações Dom Quixote.

Nº de páginas: 288

Início da leitura: 09/11/2022

Fim da leitura: 11/11/2022

**SINOPSE**

Por entre os estalos dos móveis da sua casa em Lisboa, um idoso observa o outro lado do Tejo enquanto se perde nas memórias sobre uma cave e um pequeno jardim com um baloiço.

Independentemente de ter acabado por se tornar presidente de uma grande empresa, o sucesso jamais debelou a perda daquele tempo, acorrendo repetidas vezes ao local e imaginando que as pequenas coisas e as personagens (mais significativas, como a filha, ou mais casuais, como uma senhora que passa com um carrinho das compras) se mantêm intactas, tal qual um tempo impoluto.

A escrita de Lobo Antunes deixa-nos sem fôlego. Para acompanharmos a história, temos de nos deixar ir ao sabor da narrativa que, inicialmente, parece tão desfragmentada quanto a forma escrita (com as suas frases inacabadas, mudanças repentinas de narrador, mudanças repentinas das histórias dentro da história...) e temos de o fazer sem perder muito tempo, sem pousarmos o livro por muitas horas seguidas, pois corremos o risco de nos perdermos na narrativa, de sentirmos necessidade de voltar atrás para retomar o "fio à meada". 
É incrível como, aos poucos, todas essas histórias se juntam e fazem tanto sentido! É como se acompanhássemos um caso policial de difícil resolução, que nos desorienta mas, ao mesmo tempo, nos cativa. Assim foi ler este livro. 
Uma forma linguística de nos manter presos está num certo coloquialismo, numa narrativa que nos parece dialogar com os nossos pensamentos, o que Lobo Antunes consegue pelas inúmeras repetições ao longo do livro. Essas repetições avivam-nos a memória em relação a acontecimentos narrados anteriormente, captam-nos a atenção para os pormenores e, ao mesmo tempo, encaixam perfeitamente na personagem do idoso que é invadido por recordações e cuja "memória é um sótão onde tudo acaba por se misturar num nada sem nexo".
E há um vaivém entre memórias de um passado economicamente difícil numa cave, mas em que recorda momentos felizes, como aquele em que, no "jardinzeco", empurrava a filha no baloiço, quando "o relógio do corredor, cheio de ancas, baloiçava horas gordas"; o baloiço abandonado, quando se tornou num homem de sucesso nos negócios e se afastou, tornando-se num homem pretensioso, arrogante, mulherengo... Sempre um vaivém, do baloiço, do amor, da cama que rangia na parede, das histórias, da própria vida.
Agora, resta-lhe uma solidão que se mede "pelos estalos dos móveis", "pelo pânico das ambulâncias na rua", com um relógio "a tricotar minutos graças às agulhas dos ponteiros, tecendo o cachecol do tempo a caminho da noite". 
Aconselho vivamente! Para quem gosta do género, claro!

Rodrigues, José (2020). Dias de Outono. Porto: Porto Editora.

Fotografias: Sara Augusto

Nº de páginas: 304

Início da leitura: 07/11/2022

Fim da leitura: 08/11/2022

**SINOPSE**

“«O sentimento de felicidade pode dar medo. Medo de que, de repente, tudo se desmorone. Que o coração gele, depois de aquecer. Que a pele esfrie, depois de recolher os melhores pedaços do Sol.»

Os dias de Miguel são divididos entre a intensa atividade profissional e o apoio a Teresa, a sua tia, institucionalizada com uma doença irreversível. Na família encontra o conforto dos seus dias agitados, com Catarina e os filhos André e Tiago.
As alterações recentes na administração do banco onde trabalha, a degradação do casamento e os problemas vividos pelo filho adolescente levam Miguel a questionar as opções de vida. Ao mesmo tempo, retoma as memórias mais antigas, incluindo a sua vila no interior e a casa onde nasceu e viveu, criado por Teresa, num ambiente de permanente felicidade.

Quando o mundo de Miguel parece desabar, passado e presente unem-se numa longa jornada de salvação e de mudança de prioridades, onde o amor se transforma no principal caminho para a reconstrução da felicidade, mesmo quando a perda e a saudade pareciam não querer dar tréguas…”

Gostei deste livro. Primeiro, pela forma despojada como está escrito. E malgrado todos os acontecimentos negativos, que poderiam tornar-se facilmente em clichês melodramáticos, são antes tratados com uma subtileza, uma delicadeza e um carinho, que os preenche de emoções e nos enternece ao lê-lo.

Muitas são as temáticas que passam por esta história e sobre as quais é preciso que esta sociedade consumista, sem tempo, freneticamente dedicada ao trabalho, reflita: o abandono dos filhos por parte de pais que se limitam a existir na casa, absorvidos toda uma vida pelos seus trabalhos e interesses; o refúgio de um jovem na droga, no álcool, nas amizades perigosas; a vivência do amor, que também arrefece pelas distâncias sem pontes que se vão interpondo na vida dos casais; a morte de um filho...

Penso que tem todos os ingredientes para ser uma boa história. Está bem escrito e aconselho a leitura.

As fotografias da Sara Augusto estão muito bem integradas ao longo da narrativa e o facto de serem a preto e branco, traz o cinza do outono que se coaduna com o cinza em que as almas por vezes ficam, precisando, qual Fénix Renascida, voltar a empreender o seu voo.

Algumas das fotografias, captaram-me a atenção, trouxeram-me memórias, fizeram-me pensar... quase como se fosse construindo a minha narrativa pessoal dentro da narrativa da obra. 

Cruz, Afonso (2016). Nem Todas as Baleias Voam. Lisboa: Companhia das Letras.


Nº de páginas: 280

Início da leitura: 05/11/2022

Fim da leitura: 06/11/2022

**SINOPSE**

"Será possível vencer a guerra com a música? Em plena Guerra Fria, a CIA engendrou um plano, baptizado Jazz Ambassadors, que tinha como missão cativar a juventude de Leste para a causa americana. 

É neste pano de fundo que conhecemos Erik Gould, pianista de blues, exímio e apaixonado, capaz de visualizar sons e de pintar retratos nas teclas do piano. A música está-lhe tão entranhada no corpo como o amor pela única mulher da sua vida, que desapareceu de um dia para o outro. Será o filho de ambos, Tristan, cansado de procurar a mãe entre as páginas de um atlas, que encontrará dentro de uma caixa de sapatos um caminho para recuperar a alegria."

Afonso Cruz tem definitivamente o dom da escrita! 

A delicadeza e, ao mesmo tempo, força da linguagem, a criatividade das construções, o coloquialismo que consegue através das repetições de palavras e frases, em jeito de conversa com o leitor, as metáforas criativas, o corpo e a credibilidade que dá às personagens (que facilmente visualizamos na nossa mente), a história que nos prende de imediato até ao fim, onde se conjugam múltiplos ingredientes: a música, que através das teclas do piano, tocado por Erik Gould, consegue adentrar-se e deixar em êxtase quem a escuta, ainda que nasça de muita dor infligida pelo próprio; o amor quase insano que Gould nutre por Natasha, que o deixou, mas que ele acredita que regressará, a quem envia cartas em garrafas atiradas ao mar; o fantástico, através da morte que a criança, Tristan, consegue ver, cuidar, guardar lugar para ela, até se ir desprendendo, gradualmente; o livreiro Isaac Dresner, que publica textos de um desconhecido, porque os acha muito bons, mas nem ele sabe que resultam de pessoas que ele tortura para lhe contarem histórias; Clementine, a prostituta que sabia falar latim, personagem crucial no crescimento e libertação de Tristan, a quem chama "meu príncipe" e a pintora, mulher de Isaac, a Tsília. 
A par, o Relatório Gould, dá-nos a conhecer melhor os factos e as personagens, ao se tecerem comentários sobre os vários acontecimentos e pessoas envolvidas.

Verdadeiramente brilhante e imperdível!

Algumas (poucas) passagens de entre as muitas que selecionei:

"À noite, na cama, os sonhos de Gould eram uma forma de Natasha se deitar dentro da sua cabeça... Acreditava que Natasha pudesse voltar quando ele não estivesse em casa para a receber e beijar dos pés até ao coração." (pág. 20)

"- Porque estás tão sério?

Se as suas emoções pudessem traduzir-se em palavras, seriam assim: Por causa da nota que tocas na cabeça, por causa das paredes que tens nos olhos, por causa das cicatrizes todas na tua pele, das rosas e da tristeza (...) por causa dos sonhos que ainda não cumpri e porque me sinto sozinho como se estivesse pendurado no meio do Universo, preso a uma estrela muito distante (...) Mas Tristan não saberia verbalizar assim as emoções..." (pág. 41)

"Tristan pegou na esponja e no sabão e deu banho à morte(...)lavou os pés à morte e as coxas e as virilhas e as costas e os sovacos e os cabelos grisalhos (...) A morte levantou o rosto velho, olhou Tristan nos olhos e sorriu enquanto ele lhe tirava o champô." (pág. 90)

"...a arte é um desvio da norma. Corrompe. Desfaz. A arte é uma doença da expressividade humana." (pág. 130)

Ferrante, Elena (2014). A Amiga Genial. Lisboa: Relógio D’Água.

Tradução: Margarida Periquito

Nº de páginas: 272

Início da Leitura: 01/11/2022

Fim da leitura: 04/11/2022

**SINOPSE**

A Amiga Genial é a história de um encontro entre duas crianças de um bairro popular nos arredores de Nápoles e da sua amizade adolescente.

Elena conhece a sua amiga na primeira classe. Provêm ambas de famílias remediadas. O pai de Elena trabalha como porteiro na câmara municipal, o de Lila Cerullo é sapateiro.
Lila é bravia, sagaz, corajosa nas palavras e nas ações. Tem resposta pronta para tudo e age com uma determinação que a pacata e estudiosa Elena inveja.
Quando a desajeitada Lila se transforma numa adolescente que fascina os rapazes do bairro, Elena continua a procurar nela a sua inspiração.

O percurso de ambas separa-se quando, ao contrário de Lila, Elena continua os estudos liceais e Lila tem de lutar por si e pela sua família no bairro onde vive. Mas a sua amizade prossegue.

A Amiga Genial tem o andamento de uma grande narrativa popular, densa, veloz e desconcertante, ligeira e profunda, mostrando os conflitos familiares e amorosos numa sucessão de episódios que os leitores desejariam que nunca acabasse.

«Elena Ferrante é uma das grandes escritoras contemporâneas.»

The New York Times

Este livro conta-nos a história de duas meninas, Elena e Lila, na Nápoles dos anos 50 e num bairro pobre, de pessoas da “plebe”, muito marcado pela violência. Destacam-se nos estudos, Elena pela dedicação e estudo e Lila através da sua inteligência natural e curiosidade que faziam dela uma leitora voraz.

Mas num bairro pobre, nem todos conseguem prosseguir os estudos e acabam a trabalhar nos negócios dos pais. É o que acontece com Lila.

A amizade que as vai acompanhar durante a fase da infância até à adolescência é, quanto a mim, pouco saudável, uma vez que Elena, a narradora da história, fala da amiga sempre como sendo melhor que ela em tudo, melhor nos estudos, melhor a escrever, melhor em questões de beleza. Inclusive menciona que muito do que aprendeu foi com Lila. Neste processo de crescimento de Elena, há claramente um rol de preocupações que mais não são que as preocupações de todas as adolescentes: baixinha, com borbulhas, nariz largo… É assim que ela se vê, sempre que olha para o espelho, especialmente depois de se ver obrigada a usar óculos. Assim, penso que grande parte da infância/adolescência de Elena é vivida em função de Lila, do que ela pensa, do que ela diz, do que ela faz, das suas opções, numa dependência total. Mas esta é a perspetiva de Elena. Em determinados momentos, gostaria de saber um pouco mais sobre os pensamentos de Lila. O que realmente sentiu quando se viu impedida de continuar a estudar e a amiga prosseguiu os estudos?

Ficamos a conhecer grande parte dos jovens do bairro e as voltas que as suas vidas amorosas vão sofrendo.

Gostei da forma como Elena Ferrante nos prende à história, como as suas descrições cativam, como as palavras têm a força necessária para nos absorver por completo.

Agora, faltam-me os próximos três livros...

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Sobre mim

Professora de português e professora bibliotecária, apaixonada pela leitura e pela escrita. Preza a família, a amizade, a sinceridade e a paz. Ama a natureza e aprecia as pequenas belezas com que ela nos presenteia todos os dias.

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