Histórias Soltas Presas Dentro de Mim

Jaouad, Suleika (2021). Entre Dois Reinos. Alfragide: Lua de Papel.

Tradução: J.C. Silva
Nº de páginas: 416
Início da leitura: 22/12/2024
Fim da leitura: 26/12/2024

**SINOPSE**
"Naquele ano, o mundo parecia sorrir a Suleika. Tinha acabado o curso e ia começar uma nova vida em Paris, ao lado de Will, por quem se tinha apaixonado perdidamente. Podia ser um conto de fadas, não fosse aquela comichão que crescia de dia para dia, o cansaço, a falta de força. No meio do sonho em construção, e aos 23 anos, chegou o diagnóstico: leucemia.

Suleika regressou aos EUA sem emprego, casa ou liberdade. E começou a sua longa caminhada contra um monstro invisível: passaria os anos seguintes no hospital, fechada entre quatro paredes, e começou a relatar o seu dia a dia num diário publicado pelo New York Times. A coluna, que lhe valeu um Emmy, tornou-se viral. Recebeu cartas e e-mails de milhares de pessoas que se reviam nela ou admiravam a sua infinita resiliência.

Quando a deram como curada, Suleika tentou voltar ao reino que abandonara, mas descobriu que era agora outra pessoa. À procura de si e de uma casa que fosse sua, fez-se à estrada, acompanhada pelo seu rafeiro, chamado Oscar. Percorreu os EUA, conheceu as pessoas com quem se correspondera: desde uma adolescente com cancro a um prisioneiro no corredor da morte.

Entre Dois Reinos é essa viagem real e metafórica pela memória de uma mulher que se reconcilia com o seu novo corpo, a sua nova alma, a sua nova vida. E nessa paisagem íntima, revelada em páginas tão belas que julgaríamos pertencer a um romance, Suleika mostra-nos o que é procurar (e encontrar) o caminho para casa."
Qualquer livro que aborde a temática do cancro e dos que padecem por causa dele, é um livro que incomoda, que magoa, que nos transporta a todos os que perdemos para essa maldita doença. Este não é exceção. O cancro é algo que interrompe a vida do doente. Suleika tinha apenas 23 anos e uma vida pela frente, cheia de projetos, como qualquer jovem da sua idade, quando uma leucemia lhe veio alterar os planos. A forma como nos descreve tudo o que se passa cá fora, enquanto ela está enclausurada num quarto de hospital, é duro, é desumano. É o blogue que cria para falar de si e da sua doença, que se torna viral e cativa muitos seguidores, ansiosos por ler as suas publicações e é, sem dúvida, uma forma de se sentir menos só.
A autora, neste seu romance autobiográfico, vai tentando encontrar razões para viver, de acordo com as suas novas limitações. Vê-se forçada a adaptar-se às mudanças que o cancro trouxe ao seu organismo, e, ainda assim, celebrando o prazer de estar viva. 
Após a leucemia, percorre os EUA na sua "pão de forma amarela", acompanhada pelo seu fiel companheiro, tendo sido, nesse momento, que escreveu este livro, baseado, em grande parte, nos diários que foi escrevendo e que a acompanharm em todos os momentos da sua vida. Durante a viagem, muitas foram as pessoas que conheceu, que lhe escreveram, que a marcaram e que ficarão para sempre na sua mente. Recomendo mas alerto para os mais suscetíveis de sofrer com histórias reais, como é o meu caso.

Reis, Patrícia (2007). Morder-te o Coração. Alfragide: Publicações Dom Quixote.

Nº de páginas: 156
Início da leitura: 21/12/2024
Fim da leitura: 21/12/2024

**SINOPSE**

"Um livro sobre a vida. A das personagens e a nossa.

Encontros e desencontros por causa do amor: um homem e uma mulher no Pico; a fuga dela, a busca dele, a vida em Estocolmo, a infância, as memórias africanas da amante dos dois, o desespero dele e a tentativa de suicídio dela."

Este pequeno romance fala-nos de amor e de tudo o que este implica, da separação que, em vez de conduzir a um esquecimento, por vezes, tem o efeito inverso, tornando-se numa obsessão. 
O mais curioso deste livro é a narrativa intercalada entre dois narradores, ele e ela, que nos vão contando a história, segundo o seu ponto de vista, mas, isso acontece de tal maneira, que nos parecem fundidos numa só voz, fazendo-nos retroceder para ver em que momento mudamos de narrador. 
Realmente, cada um tem as suas vivências e essas vivências condicionam os meandros do próprio coração. Mas, quando se "morde o coração", fica uma marca para sempre, e, ainda que se possa atenuar, não cicatriza. Aconselho!

Vidal, Víctor (2024). Não Há Pássaros Aqui. Lisboa: Leya. 


Nº de páginas: 248

Início da leitura: 18/12/2024

Fim da leitura: 21/12/2024


**SINOPSE**

"Ana recebe um telefonema de uma vizinha da mãe informando que Andrea desapareceu na sequência de uma série de escândalos no bairro, entre os quais o suposto sequestro de uma criança. Apesar de ter jurado a si mesma que não voltaria à casa da mulher que lhe infligiu todo o tipo de violência, Ana não consegue ficar indiferente à situação; e o que encontra no apartamento é bastante intrigante: lixo por toda a parte, pegadas de lama, móveis destruídos, garrafas vazias amontoadas no caixote.

Enquanto se interroga sobre o que terá sido a vida de Andrea desde o dramático acontecimento que marcou as duas para sempre, Ana empreende uma dolorosa viagem às memórias da infância, que incluem não só uma mãe desequilibrada e alcoólica que tem um relacionamento conturbado com um homem perigoso, mas também um rapaz frágil que a faz cúmplice dos seus traumas e, por via das afinidades, se torna o seu único amigo. E, apesar de não se verem há muitos anos e de Ana o ter desiludido, é justamente a este amigo que resolve agora pedir ajuda.

Com personagens inesquecíveis e desconcertantes, Não Há Pássaros Aqui é uma reflexão madura sobre o modo como aquilo que vivemos na infância determina a nossa vida adulta e como tendemos a reproduzir comportamentos a que assistimos, mesmo quando friamente os condenamos.

Num tempo em que a saúde mental é um problema à escala global, este é um romance de estreia profundamente atual que venceu o Prémio LeYa em 2023."
Prémio Leya 2023, Vítor Vidal, escritos brasileiro, escreve, sem dúvida muito bem. Neste livro, vai intercalando momentos presentes e momentos passados, de forma a prender o leitor à narrativa.
A história tem como protagonista uma mulher de 30 anos que começa por receber um telefonema a informar sobre o desaparecimento da sua mãe, que não via há vários anos. Regressa, então, à casa de infância para tentar descobrir o que acontecera à mãe. Mas, ao entrar em casa, um mar de memórias envolve-a e, inevitavelmente, temos analepses que nos permitem entender como foi esta relação com a mãe e o que levou ao seu afastamento. Por outro lado, no presente, queremos perceber como desapareceu a mãe, se houve crime ou suicídio. Convido-vos pois a mergulharem neste livro, que apreciei bastante.

Martínez, Layla (2024). Caruncho. Lisboa: Antígona, 2.ªedição.

Tradução: Guilherme Pires
Nº de páginas: 128
Início da leitura: 12/12/2024
Fim da leitura: 19/12/2024

**SINOPSE**
"Caruncho (2021) narra o regresso de uma neta, acusada de um crime, à casa rural da família e mergulha o leitor no coração de uma Espanha vazia, marcada por resquícios do franquismo, uma terra tão agreste e estéril como o destino a que condena as mulheres que nela vivem.

Contada a duas vozes, pela jovem e pela avó, esta história de rancor e vingança é indissociável da memória do lar assombrado, de espectros que clamam justiça, entre quatro paredes sobre as quais pesam traumas herdados e décadas de violência e opressão.

Um aclamado romance de estreia, com ecos de Pedro Páramo, de Juan Rulfo, e de alguns contos de Silvina Ocampo, em que se entrelaçam terror, injustiça social e uma pesada herança familiar que, como o caruncho, corrói as protagonistas."
Este é um livro bastante invulgar e fora da caixa. Apesar de muito breve, requer bastante concentração na leitura, para não se perder o fio à meada. A casa é o cerne da narrativa, o eixo em torno da qual se desenrola a história e as personagens adquirem destaque. É uma casa que absorve, na qual ficam gravadas, para sempre, as personagens e as suas vivências. É uma casa que guarda os seus espectros nos armários e que, aos poucos, nos vai abrindo a porta para que entremos e fiquemos também nós, leitores, a fazer parte da sua história. Somos literalmente sugados para a casa, o seu misticismo, os seus fantasmas, que estão bem vivos e presentes ao longo de toda a narrativa e que nos deixam sem ar. Tudo parte da relação de uma avó e uma neta, que transcende a própria morte e a história vai sendo narrada, alternadamente, pelas duas. E, nesta casa assombrada e assombrosa, que faz despertar memórias, narra-se a história destas protagonistas femininas, uma história de ressentimento e vingança, que não podem deixar de ler. Primeiro estranha, depois entranha.

Sousa, Mário Lúcio (2024). O Livro Que Me Escreveu. Alfragide: Publicações Dom Quixote. 

Nº de páginas: 184
Início da leitura: 14/12/2024
Fim da leitura: 15/12/2024

**SINOPSE**
"Diagnosticado com uma doença cardíaca grave, um jovem decide escrever o Livro da sua vida - e escrevê-lo literalmente com o coração. Sempre ao lado da mulher, leva trinta anos para completar a empreitada, passando fome e privações e vivendo a crédito, esperando pagar as dívidas quando o Livro for publicado.

Assim que o termina, manda as folhas dactilografadas ao seu editor, mas este nunca as recebe. O desespero leva o casal e os amigos e vizinhos a uma busca desesperada em todas as estações de Correios do mundo, até que o editor dá a entender que finalmente recebeu o livro. Só que não era o Livro… Então, começam a chover livros assinados com o nome do escritor, e o povo começa a ler desenfreadamente, tornando a leitura um fenómeno à escala global.

O Livro que Me Escreveu é uma novela genial, um elogio maravilhoso à solidariedade e à leitura, essenciais na formação do ser humano. «O Livro tem magia e vida dentro, é um passeio pelo melhor que somos, um derrame de imaginação e de amor pela leitura, os leitores, os escritores, teu povo e toda nossa gente. Tem momentos de grande beleza poética, e mais, tem uma poética sustentada que não se perde nem quando acelera, às vezes com força demasiada. Gosto das imagens, tantas, por exemplo, que o mundo é uma biblioteca, que os livros podem ser deixados junto a jarras de água nas janelas das casas, e que o som da palavra cria caramelos na boca. É uma novela estupenda, para ser repartida pelo mundo.»
Fragmentos de uma carta de Pilar del Río ao autor."
Esta é uma novela fantástica de homenagem aos livros e aos leitores, que todos deveriam ler. 
O protagonista leva 30 anos a escrever um livro, que lhe permitiria pagar as dívidas acumuladas. Quando finalmente dá o Livro por concluído, que ele compara ao nascimento de um filho, envia-o a uma editora. Acontece que a resposta tarda em chegar e, quando chega, fica a saber que o Livro nunca chegou. Dá-se, então, uma procura em todos os postos de correios do Mundo, pelo Livro desaparecido. Mas, certo dia, o editor contacta-o com a feliz notícia: finalmente, chegara o tão aguardado livro a esta terra de gente que não lia. Mas seria este o livro escrito pelo protagonista?
Aconselho muito a sua leitura!

"E sobreveio-lhes a mágica de quando se lê: toda a gente se juntou no recato, as pessoas, as ruas, as aldeias, os caminhos, os mares e as terras, todos pararam de quietude naquele lugar perdido, e tão elevada se tornou a vida que o barulho e o incómodo foram decretados violações ao Código de Posturas Municipais...E assim, na tranquilidade de espírito do lar e do ler, o povo, ora contando, ora ouvindo, devorou com avidez de faminto o seu exemplar e passou-o acto seguinte ao vizinho que não conseguiu adquirir o livro." 

Jesus, Miguel (2020). Lugar para Dois. Alfragide: Casa das Letras.

Nº de páginas: 240
Início da leitura: 09/12/2024
Fim da leitura: 09/12/2024

**SINOPSE**
"Depois do sucesso da inauguração do Metropolitano de Lisboa, Daniel Stoffel, responsável financeiro do projeto, parece poder escolher o futuro que quiser. Porém, a morte da filha num acidente estúpido enche-o de uma culpa que de não se consegue libertar.

Desfeito o casamento, começa a afundar-se na bebida, até que um amigo lhe sugere que deixe Portugal, onde tudo aconteceu, e tente recomeçar a vida noutro lugar. Instala-se, então, num lugar recôndito de Moçambique, onde uma velha negra o ajuda nas tarefas domésticas e lhe leva jornais que o põem a par dos movimentos independentistas das Colónias e das mudanças por que a Metrópole vai passando.

Apesar da vontade de ficar sozinho, o frondoso embondeiro que o protege da curiosidade alheia tem uma frase riscada no tronco que parece traçar-lhe um destino diferente, insistindo na paternidade que lhe estava destinada. E, por mais que Daniel a renegue, é nesse caminho que poderá encontrar o próprio perdão.

Belo, duro, mágico e ternurento - com uma banda sonora exclusiva e um toque africano no colorido das palavras e das paisagens -, Lugar para Dois é um romance excecional sobre a culpa, o amor e aquilo que ainda tem para dar quem julga que, afinal, já perdeu tudo."
Que livro! Ainda não o tinha lido, pensando que pudesse ser um pouco "lamechas". Não! Neste livro, temos o poder da palavra escrita e ouvida, porque o acompanham canções originais do escritor, que também canta, e que resultam, a cada momento narrativo, de uma forma ímpar. A história, que começa em Lisboa com o protagonista Daniel a ter de fugir de Portugal, optando por se refugiar num local remoto de Moçambique - o "Lugar para Dois" -  é muito mais do que uma história de amor. É uma fuga aos sentimentos, é uma história de quem se dá e cria afetos sem os demonstrar, sem se pronunciar. É uma história de superação, de busca da paz interior, que todos almejamos. 
Esta história é-nos contada, a partir do aparecimento de um gato, que veio a chamar-se 31 de fevereiro e é-nos contada pelo próprio gato. A linguagem flui e traz-nos Moçambique aos olhos (muito ao jeito de Mia Couto) Impossível largar depois de começar. É viciante. Recomendo muito!

"Daniel fitou-a, com lágrimas nos olhos, as primeiras que lhe vi.
- Tinhas de vir para eu poder ir... - Nora escondeu o rosto nas mãos cansadas do velho, ouvindo-lhe as palavras soluçadas." (pág. 204)
"Há restos de uma história, pores do sol feitos de paz/ sabor de sal nos sonhos que um dia eu deixei para trás" (pág. 235)
"Escolhi um mundo sem ninho/corda bamba por caminho/Nunca tive um lugar para dois" (pág. 238)

Perrin, Valérie (2024). Querida Tia. Queluz de Baixo: Editorial Presença.

Tradução: Maria Ferro e Maria de Fátima Carmo
N.º de páginas: 512
Início da leitura: 01/12/2024
Fim da leitura: 08/12/2024

**SINOPSE**
"Colette era uma mulher sem história, mas não há pessoas sem história… Agnès recebe um telefonema e julga que se enganaram: a polícia diz-lhe que Colette, a sua querida tia, acaba de morrer. Mas como é possível, se o funeral aconteceu há três anos? Será um engano, certamente, mas ela terá de regressar a Borgonha, lugar que há tanto tempo deixou para trás, para perceber o que realmente aconteceu.

Aquela mulher, que Agnès não sabe se é ou não a sua tia, deixou um conjunto de coisas ao seu cuidado: notas com os últimos desejos e um conjunto de cassetes áudio. A sobrinha de Colette sempre vira a tia como uma mulher sem história, alguém que passara pela vida sem deixar marcas, mas, agora, prepara-se para compreender o que nunca devemos esquecer: na verdade, não há pessoas sem história, e a de Colette tem tanto, tanto para contar.

Podem as palavras, escritas ou ditas, ter o poder de mudar o nosso presente e, mais, dar-nos outro passado?
Juntando o destino e as vidas de várias mulheres, de forma tocante e surpreendente, Valérie Perrin regressa com um romance que reflete o mais humano e profundo de todos nós."
É um encanto a forma como Perrin escreve, o sentimento que transmite, a elegância linguística, o corpo que dá à narrativa e às personagens, as reviravoltas inesperadas da história. Apesar de ter gostado mais de A Breve Vida das Flores, este também não desilude. Não digo muito mais sobre ele, uma vez que a sinopse é bastante completa. Apenas refiro que adorei e que a força destas histórias acompanhar-me-ão por muito tempo. 

Kawabata, Yasunari. O Arco-Íris. Alfragide: Publicações Dom Quixote, 2024. 

Tradução: Francisco Agarez

Nº de páginas: 208

Início da leitura: 28/11/2024

Fim da leitura: 30/11/2024

**SINOPSE**

"Poucos anos depois de terminada a Segunda Guerra Mundial, e com o Japão ainda abalado pelos seus efeitos, duas irmãs - filhas do mesmo pai mas de mães diferentes - esforçam-se por compreender o novo mundo em que caminham para a idade adulta. Asako, a mais nova, vive obcecada pelo propósito de encontrar uma terceira irmã, ao mesmo tempo que experimenta o amor pela primeira vez.

Enquanto isto, Momoko, filha primogénita do seu pai - assombrada pela perda do namorado kamikaze e pelos últimos dias tormentosos que viveram juntos -, procura refúgio numa série de romances doentios. e ambas se sentem incapazes de escapar ao legado das suas falecidas mães.

Romance sensível e profundo sobre os persistentes traumas da guerra, os indestrutíveis laços familiares e a inelutabilidade do passado, O Arco-Íris é uma obra lancinante e melancólica de um dos maiores escritores japoneses."

Esta obra aborda as complexas e quase inacessíveis relações humanas e familiares. Numa sociedade japonesa do pós II Guerra Mundial, marcada por grandes mudanças sociais e traumas, conhecemos Asako e Momoko, filhas do mesmo pai, mas de mães diferentes. Asako quer encontrar uma terceira irmã, que o pai ocultou, e que é gueixa em Quioto. Momoko, a mais velha e cuja mãe se suicidou, por seu turno, sente-se sempre a "enjeitada" em casa do pai, e isso é determinante na sua personalidade soturna e nas relações auto-destrutivas em que se vai envolvendo.
Para além das descrições de paisagens naturais, a que Kawabata já nos habituou, marcantes e poéticas, destaco aqui os diálogos entre as personagens, escritos com uma apuradíssima sensibilidade, que nos dão a conhecer os seus pensamentos mais recônditos, as suas fragilidades, os seus lutos, amores, culpas...
Não é um livro de ação, mas que convida à reflexão, à introspeção. Recomendo, para quem aprecia o género.

 Kang, Han (2016). A Vegetariana. Lisboa: Publicações D. Quixote.

Tradução: Maria do Carmo Figueira
Nº de páginas:192
Início da leitura: 24/11/2024
Fim da leitura: 27/11/2024

**SINOPSE**

"Uma combinação fascinante de beleza e horror.
Ela era absolutamente normal. Não era bonita, mas também não era feia. Fazia as coisas sem entusiasmo de maior, mas também nunca reclamava. Deixava o marido viver a sua vida sem sobressaltos, como ele sempre gostara. Até ao dia em que teve um sonho terrível e decidiu tornar-se vegetariana. E esse seu ato de renúncia à carne - que, a princípio, ninguém aceitou ou compreendeu - acabou por desencadear reações extremadas da parte da sua família. Tão extremadas que mudaram radicalmente a vida a vários dos seus membros - o marido, o cunhado, a irmã e, claro, ela própria, que acabou internada numa instituição para doentes mentais. A violência do sonho aliada à violência do real só tornou as coisas piores; e então, além de querer ser vegetariana, ela quis ser puramente vegetal e transformar-se numa árvore. Talvez uma árvore sofra menos do que um ser humano.

Este é um livro admirável sobre sexo e violência - erótico, comovente, incrivelmente corajoso e provocador, original e poético. Segundo Ian McEwan, «um livro sobre loucura e sexo, que merece todo o sucesso que alcançou». Na Coreia do Sul, depois do anúncio do Man Booker International Prize, A Vegetariana vendeu mais de 600 000 exemplares. Aplaudido em todos os países onde está traduzido, é um best-seller internacional."
Este é um livro que incomoda e choca, que nos angustia e deprime.
Yeong-hei, a protagonista deste livro, leva uma vida perfeitamente normal, dentro do que é uma vida perfeitamente normal numa sociedade opressora em relação às mulheres, em que estas têm o dever de manter a casa em ordem e cumprir as suas obrigações conjugais. Mas, a sua atitude sofre uma reviravolta a partir de um sonho que tem. Torna-se vegetariana, vai deixando de comer, com o intuito de se tornar, ela própria num vegetal. É interessante ver as várias reações: do marido, da irmã e do cunhado e a forma como cada um lida com os acontecimentos que se desenrolam após esse sonho. 
Penso, no entanto, que o título pode ser falacioso, uma vez que não se trata de uma pessoa que se torna vegetariana, antes de uma pessoa que decide deixar de comer (gradualmente, e não apenas carne) e cujo comportamento revela um estado mental doente. O vegetarianismo surge aqui antes como mote para a libertação da personagem de tudo o que é convencional na sua vida, um ato de rebeldia e uma afronta aos costumes vigentes e seguidos à risca pela família e pela comunidade em que se encontra inserida, uma forma de voltar ao ventre da terra mãe.

Ernaux, Annie (2023). Não Saí da Minha Noite. Porto: Porto Editora.

Tradução: Tânia Ganho
Nº de páginas:88
Início da leitura: 25/11/2024
Fim da leitura: 28/11/2024

**SINOPSE**
No verão de 1983, durante uma vaga de calor, a mãe de Annie Ernaux sentiu-se mal e foi hospitalizada. Aperceberam-se de que não comia nem bebia há vários dias, estava desorientada, revelava falhas de memória. Pouco depois, foi diagnosticada com a doença de Alzheimer. «Não saí da minha noite» foi a última frase que escreveu, numa carta a uma amiga, quando já se encontrava a viver com Annie, que nos três anos seguintes manteve um diário. Aí registou não apenas os sinais do agravamento da doença da mãe, mas também os seus próprios sentimentos ao ver-se impotente, assistindo ao definhar daquele ser que lhe deu vida. «Sonho muitas vezes com ela, tal qual era antes da doença. Está viva, mas esteve morta. Quando acordo, durante um minuto, tenho a certeza de que ela vive realmente sob essa dupla forma, morta e viva ao mesmo tempo, como as personagens da mitologia grega que atravessaram duas vezes o rio dos mortos.»
Neste pequeno livro biográfico, Annie conta-nos, em forma de diário, os últimos meses de vida da mãe, uma mãe que, durante a infância e juventude de Annie, foi implacável, dura, exigente e cruel. Sentimos que os papéis se inverteram, a mãe depende agora de Annie e gosta de ser cuidada por ela, embora, na maior parte do tempo, já não consiga dizer-lho, uma vez que a mãe sofre de Alzheimer. Annie vai revelando sentimentos contraditórios: apesar de haver uma mágoa pela mãe que foi, não consegue deixar de cuidar da mãe que tem e com a qual sente que, em determinados momentos, se funde. Sente igualmente que, ao cuidar dela, o faz com a mesma dureza da mãe...
Annie fala-nos do quarto de Hospital onde a mãe e outros pacientes se encontram e fá-lo de uma forma nua, crua e dura. De tal forma, que nos angustia, nos faz perceber que o ser humano pode chegar a um grau máximo de decadência, de animalidade, que fazemos por ignorar, por não pensar, até pela nossa saúde mental. Pensar na velhice, na mente em branco, nos gestos hesitantemente atabalhoados, na incontinência, no cheiro de urina e não só, num corpo e mente que deixam de ter controlo, faz-nos refletir e deixa-nos tristes. Realista e triste, mas muito bem escrito.

Tanguchi, Jiro (2017). O Homem Que Passeia. Palmela: Devir.
Tradução:Inês Rocha Silva
Nº de páginas: 244
Início da leitura: 21/11/2024
Fim da leitura: 24/11/2024

**SINOPSE**
"Nestas páginas com um estilo introspectivo e intimista, Jiro Taniguchi dá-nos a conhecer O homem que passeia, através das suas deambulações,frequentemente mudas e solitárias, através da cidade onde reside. Uma história que se distancia dos estereótipos habituais do mangá, onde se sucedem pequenas histórias sem diálogo, encontros ocasionais, o prazer da contemplação e de andar sem destino."
Tal como nos é dito na sinopse, este é um mangá introspetivo. Acompanhamos um homem que passeia, no seu dia a dia, e vamos, com ele, captando tudo o que o rodeia, paisagens e acontecimentos aparentemente banais que, ao serem realmente observados, têm por detrás de si momentos der poesia e de paz, de tranquilidade, essa tranquilidade que tanta falta nos faz nos dias de hoje. Um poder de observação e de regozijo com as pequenas coisas, que não nos damos o privilégio de usufruir, pois passamos por tudo sempre no ritmo alucinante das nossas vidas frenéticas e monótonas. De repente, a meio da leitura, deu-me vontade de sair para a rua e passear sem rumo certo. Não caminhar, que não é o ritmo da caminhada, mas sim passear, usufruir, ver. E, sempre que pensamos em passear, lá vem a questão do tempo e do trabalho. Quando nos restarão uns segundos apenas para caminhar, pensar, encontrarmo-nos, observarmos o que nos rodeia?
Aconselho! Não esquecer que é um mangá e que, por esse facto, se lê ao contrário, começando pelo fim e da esquerda para a direita. Gostei da experiência.

Caminito, Giulia (2024). A Água do Lago Nunca É Doce. Alfragide: Lua de Papel.

Tradução: Vasco Gato
N.º de páginas: 412
Início da leitura: 20/11/2024
Fim da leitura: 23/11/2024

**SINOPSE**
"Gaia nasce e cresce pobre, ao lado dos marginalizados, dos que não importam, dos que nada têm. Aos seis anos mora num subúrbio problemático de Roma. Partilha uma casa minúscula com a mãe, Antonia, uma ruiva otimista e forte, o pai, que trabalhava nas obras até cair de um andaime e ficar paralítico, e os três irmãos. o mais velho, Mariano, é de um pai diferente, e os gémeos, mais novos, dormem num caixote de cartão.

É com esperança num futuro melhor que a família se muda para um apartamento a trinta quilómetros da capital italiana, perto do lago Bracciano. Mas a nova morada revela-se igualmente hostil para Gaia, que ali se vai fazendo mulher, enfrentando diariamente uma vida que a agride e dececiona - ao ponto de lhe matar a capacidade de sonhar, ou pelo menos de desejar "não ser menos do que ninguém", como a sua mãe insiste em repetir.

Ao contrário de Antonia, que carrega o mundo aos ombros sem nunca esmorecer, Gaia enfrenta a pobreza e a humilhação com sucessivas vagas de ódio - contra tudo e todos, até contra si própria, que a afastam de qualquer hipótese de fuga ou redenção.

Em A Água do Lago Nunca É Doce, finalista do prémio Strega 2021, Giulia Caminito escreve sem rodeios sobre uma realidade incómoda. Num estilo ousado, direto e austero, expõe as hipocrisias da sociedade através de uma protagonista inquietante, cuja fúria parece capaz de rasgar o cenário de águas turvas, onde ela, e muitos outros, anónimos, (ainda) sobrevivem."
Este livro conta-nos a história de uma família que vive em condições muito desfavorecidas e que vai tentando manter-se à tona, no meio de uma sociedade tão desigual e hipócrita, onde é difícil ultrapassar as divergências, onde se está condenado a navegar para sempre nas águas turvas do lago. A protagonista é Gaia, a segunda filha, que se vê constantemente confrontada com essas desigualdades, mas que, ainda assim, aproveitando todos os recantos para estudar, acaba por seguir os estudos. Porém, será que estigma que lhe está colado à pele, alguma vez a deixará ser e seguir o que realmente queria? A autora italiana, vencedora dos prémios Campiello & Strega Off, escreve num estilo cru, direto e duro, expondo uma realidade que incomoda, que nos inquieta. Recomendo!

Andrade, João; Buchinho, Luís (2022). Sal. Funchal: A Casa do Livro. 

Nº de páginas: 192
Início da leitura: 19/11/2024
Fim da leitura: 21/11/2024

**SINOPSE**
"A Sal tem 14 anos e vive com os pais na Ilha da Madeira. O ambiente familiar negligente e desfavorável à jovem, é analisado pela Comissão de Proteção de Crianças e Jovens. O tribunal decide retirá-la para uma casa de acolhimento temporário para ter mais tempo para analisar este caso que lhe parece ter mais segredos... Sal inicia, nesta nova casa, um longo e doloroso processo de crescimento pessoal."

Esta novela gráfica deveria ser lida por muitas famílias, aliás, por todos, para que se passem a ver com outros olhos, os jovens. Antes de atirar pedras, é preciso perscrutar, saber o que está por detrás de determinados comportamentos. Sal é aqui a jovem em risco, cuja assistência social decide que deve ser retirada aos pais, que não têm condições para lhe dar uma educação e uma vida estáveis - o pai é alcoólico e a mãe não faz outra coisa se não gritar e, exausta e desencantada, começa a demitir-se das suas funções de mãe. No meio disto tudo, de discussões frequentes, está Sal, que até vinho o pai lhe manda ir comprar. 
Sal é integrada numa instituição de acolhimento de jovens. Mas será que os seus pesadelos terminam aí? Vale a pena ler e refletir. refletir muito.

Taniguchi, Jiro (2016). Terra de Sonhos. Lisboa: Levoir.


Tradução: José H. de Freitas e Shinji Iwaoka

Nº de páginas: 176

Início da leitura: 13/11/2024

Fim da leitura: 18/11/2024

**SINOPSE**

"Jiro Taniguchi começou a sua vida profissional como empregado de escritório, até descobrir que o que queria realmente fazer era desenhar. No início dos anos 70 irá descobrir a BD europeia, que o influenciará durante o resto da sua carreira, cada vez mais orientada para temas quotidianos. Taniguchi foi o único autor japonês a ganhar dois prémios em Angoulême, o maior Festival de BD europeu, que lhe dedicou uma grande exposição em 2015. Ao longo de histórias impregnadas da observação do quotidiano,

"Terra de Sonhos" mergulha-nos na realidade das emoções humanas: a morte de um cão e a tristeza que ela provoca, o nascimento de uma ninhada de gatos, a chegada de uma jovem sobrinha que fugiu de casa, os sonhos que um alpinista abandonou a troco de uma família... Relatos da felicidade e da melancolia simples da vida como ela é."

Esta novela gráfica, constituída por três contos, parte de histórias aparentemente banais do dia-a-dia, mas aborda-as com uma ternura que nos emociona e com um sentimento que nos enternece. Dos três contos, destaco o primeiro, que nos relata a tristeza que domina que ama os seus cães, quando estes ficam velhinhos e vão perdendo as suas capacidades. E se um cão deixar de andar, ainda que não esteja a sofrer, deve ser submetido à eutanásia? Há muitas pessoas que pensam que sim, que se torna num fardo. Leiam este livro e pode ser que comecem a pensar de forma diferente.
Os três contos apresentam-nos histórias em que o amor e a entrega são os motores da vida!
Aconselho!

O'Brien, Edna (2020). Menina. Amadora: Cavalo de Ferro. 

Tradução: Raquel Dutra Lopes
Nº de páginas: 240
Início da leitura: 18/11/2024
Fim da leitura: 20/11/2024

** SINOPSE**
"Um livro perturbador e actual, descrito como uma obra-prima pela crítica, que reconstrói ficcionalmente a história das meninas raptadas pela seita jiadista Boko Haram.

Numa terrível noite, Maryam é raptada na escola e feita escrava por uma seita jiadista, tornando-se testemunha e vítima de atos brutais cometidos em nome de uma ideologia. Roubada da sua inocência e dignidade, ela, apenas uma menina, resiste valorosamente, até que, de forma inesperada, as portas para a liberdade se abrem. Contudo, novas provações e horrores se escondem: nos caminhos da floresta selvagem, que devolve Maryam, já com uma filha nos braços, e numa sociedade marcada pela guerra e pelo preconceito.

Escrito com base num artigo de jornal sobre as meninas raptadas pelo Boko Haram na Nigéria, Menina é um romance perturbador, que confronta o leitor com a natureza humana do mal. Uma obra-prima no dizer da crítica, na qual Edna O’Brien desafia as convenções da ficção, continuando a explorar os seus temas de eleição: a violência de género e a misoginia perpetuadas em nome das convenções sociais e da religião.

A autora é uma das mais importantes e admiradas escritoras de língua inglesa, e vencedora de inúmeros prémios literários, entre os quais se contam: The Irish PEN Lifetime Achievement Award for Literature, The American National Art's Gold Medal, Ulysses Medal e PEN/Nabokov Award for Achievement in Literature."
Um livro fabuloso! Adoro a forma como Edna O'Brien, escritora irlandesa, escreve. É intensa, forte pungente, arrepiante a forma que encontrou para se manifestar em relação a um artigo de jornal sobre meninas raptadas na Nigéria. Este livro é um grito de desespero, de revolta. 
As personagens são muito bem construídas, os ambientes soturnos, a ação imparável. Impossível não nos sentirmos presos a este livro até o terminarmos. Aconselho vivamnete.
Deixo algumas passagens:
"Em tempos fui uma menina, mas já não sou. Cheiro mal. Sangue seco e incrustado por todo o lado, e o meu vestido esfarrapado. Por dentro, estou desfeita." (pág. 11)
"Tenho fome. A minha saliva torna-se mais espessa e babo-me. Quero sair e procurar onde caiu o que ela atirou para fora (...) Há sujidade em mim e dentro de mim, a sujidade dos feitos deles." (pág. 95)
"- Não tenho idade para ser tua mãe" (pág. 101)

Faciolince, Héctor Abad (2023). Somos o Esquecimento Que Seremos. Lisboa: Alfaguara.

Tradução: Margarida Amado Acosta
N.º de páginas: 336
Início da leitura: 16/11/2024
Fim da leitura: 18/11/2024

**SINOPSE**
"A obra-prima do escritor colombiano é um comovente tributo à memória pessoal, familiar e política do seu pai. Um dos romances latino-americanos mais celebrados do século XXI.

A 25 de Agosto de 1987, o médico colombiano Héctor Abad Gómez é assassinado por paramilitares na cidade de Medellín, a poucos dias de umas eleições em que era candidato. Seis balas na cabeça puseram fim a uma vida de luta contra a opressão e a desigualdade social, num país amordaçado pelo narcotráfico e pela política suja.

Vinte anos depois, o filho, o escritor Héctor Abad Faciolince, decidiu contar a história do pai até ao terrível epílogo. O resultado é um livro belíssimo, poderoso no que conta, comovente no que deixa intuir, uma história dilacerada e dilacerante sobre família e pertença, sobre perda e luto.

Educação sentimental, romance de formação, radiografia da sociedade colombiana desfigurada pela violência, Somos o Esquecimento que Seremos é um romance em que pulsam memórias e afetos, escrito com a cabeça e com o coração, que emociona sem sentimentalismo, que indigna sem reclamar vingança. A obra-prima de um dos mais elogiados escritores colombianos do nosso tempo."
Este é um livro de memórias do autor colombiano, em memória do pai, vítima de homicídio em Medellín, por querer lutar contra as desigualdades sociais e contra a violência. 
Aos poucos é-nos dado a conhecer este pai, que era um pai tão diferente dos outros pais, no contexto em que viviam. Não temia a morte, consciente de que essa é certa para todos, mas acreditando que cada um pode fazer a sua parte para tornar o mundo num local melhor, sem desigualdades, sem violência, sem maldade, sem ambição. Um homem que, para além de médico, era professor universitário e não tinha qualquer constrangimento em chorar em frente aos seus alunos. Um homem que sabiamente dizia que as pessoas já nascem desiguais, "E não devido a fatores biológicos, mas a fatores sociais (condições de vida, desemprego, fome)". O seu jardim esplendoroso, de roseiras, era sinal de muita dedicação, um ensinamento de que nada se consegue sem esforço e entrega. Um homem que mimava os filhos com afeto.
Não é um livro de fácil leitura, é denso, compacto e é, aos poucos, que nos vamos ligando às personagens, à sua forma de pensar e de agir. Como diz o próprio autor, "A memória é um espelho opaco que se fez em cacos ou, melhor dizendo, é feita de intemporais conhas de recordações dispersas numa praia de olvidos." Cabe ao leitor ir juntando esses cacos até à totalidade da história lhe chegar plenamente. 

"...o egoísmo e a indiferença são características dos que são cegos para a evidência, pois estão satisfeitos com as suas boas condições e negam as más condições dos outros."

Não podia deixar de registar aqui o poema de Jorge Luís Borges, cujo primeiro verso deu  título a este livro:

Aqui. Hoje.
Já somos o esquecimento que seremos.
A poeira elementar que nos ignora
e que foi o ruivo Adão e que é agora
todos os homens e que não veremos.
Já somos na tumba as duas datas
do princípio e do término, o esquife,
a obscena corrupção e a mortalha,
os ritos da morte e as elegias.
Não sou o insensato que se aferra
ao mágico sonido de teu nome:
penso com esperança naquele homem
que não saberá que fui sobre a Terra.
Embaixo do indiferente azul do céu
esta meditação é um consolo.

– Jorge Luis Borges (Tradução: Charles Kiefer)

Couceiro, Rui (2024). Morro da Pena Ventosa. Porto: Porto Editora.

Nº de páginas: 384
Início da leitura: 14/11/2024
Fim da leitura: 16/11/2024

**SINOPSE**

"O morro da Pena Ventosa fica lá no cimo, nesse Porto antigo, onde dizem que nasceu a cidade. No morro da Pena Ventosa, as casas encavalitam-se umas nas outras e nelas sobrevivem a custo os velhos moradores, aqueles que construíram a invicta e que o turismo e a modernidade vão empurrando para os subúrbios. No morro da Pena Ventosa, são as gentes que dão o colorido às vielas escuras aonde o sol quase não chega e onde subsiste a memória coletiva de um povo que se diz tripeiro. E é no morro da Pena Ventosa que vivem as personagens deste livro, a Beta e a avó, a D. Lisete e o Dr. Belarmino, o Navalhadas e o Fulminantes, o Luís Miguel Ideias e O-da-Pastinha, nessa janela com vista para o Douro. Ou assim é até a narradora nos trocar as voltas.

Ficção e realidade entretecem-se habilmente nas mãos de Rui Couceiro, que habita o universo do realismo mágico como se aí tivesse a sua morada. Repleto de personagens ímpares e de grande fulgor imaginativo, este livro não só é uma ode à cidade do Porto e ao rio que a banha, mas às suas gentes. Tocando temas como a gentrificação, as alterações climáticas e a perda, claro, Rui Couceiro consolida neste seu segundo romance tudo o que Baiôa sem Data para Morrer já prometia."

É tão difícil falar de um livro quando ele é tão, mas tão bom como este! Devo enumerar as razões que me levaram a classificar este como um dos melhores livros que li,  até à data, este ano:
1.º Este livro pegou-me na mente e levou-me numa visita guiada ao Porto (onde vivi 5 anos), avivando memórias de ruas, de cheiros, de gentes e dando-me a conhecer outros tantos lugares, que me poderão ter passado despercebidos, mas que, numa próxima oportunidade, irei visitar.
2.º  A premissa inicial cativa-nos de imediato: uma idosa, portuense de gema, comprou o seu caixão, que se encontra em sua casa e onde se deita com duas almofadas para escrever e nos levar a entrar no seu mundo tão íntimo, tão pessoal, tão cativante! Também ela nos leva pela mão a conhecer o seu passado. Senti-me lá, a vivenciá-lo. Haverá melhor que isso?
3.º As personagens são tão bem trabalhadas, que parece que já me cruzei com elas, algures na cidade do Porto. São personagens tão bem trabalhadas, que nos parecem verosímeis.
4.ºHá, ao longo de toda a obra, um sentido de humor refinado, que nos faz sorrir.
5.ºA crítica a determinadas alterações que têm vindo a ser feitas na cidade do Porto surge com uma força subtil. Mas está lá tudo!
6.ºAs referências literárias, como Brás Cubas, Ivan Ilitch, Camilo Castelo Branco, Eça de Queirós, entre outros.
7.ºA escrita de Rui Couceiro é excelente: desde os regionalismos e o coloquial, a uma escrita literária, muito bem trabalhada.
8.ºO ritmo de escrita leva-nos a querer ler o livro de um só fôlego. Não o fiz, porque quis usufruir plenamente de todos os pormenores que, de outra forma, me poderiam escapar.
Recomendo muito!

Nam-Joo, Cho (2024). Kim JiYoung, nascidas em 1982. Porto: Porto Editora.

Tradução: Cláudia Ramos
Nº de páginas: 184
Início da leitura: 11/11/2024
Fim da leitura: 13/11/2024

**SINOPSE**
"Nomeado para National Book Award (Literatura Traduzida)
Quem é Kim Jiyoung?
Kim Jiyoung é uma menina nascida de uma mãe cujos sogros queriam um menino. Kim Jiyoung é uma irmã obrigada a dividir um quarto enquanto seu irmão fica com um só para ele.
Kim Jiyoung é uma mulher perseguida por professores do sexo masculino na escola.
Kim Jiyoung é uma filha cujo pai a culpa quando ela é assediada na rua, à noite. Kim Jiyoung é uma boa aluna que não recebe qualquer referência para estágios. Kim Jiyoung é uma funcionária modelo, mas é esquecida nas promoções. Kim Jiyoung é uma esposa que abdica da sua independência por uma vida doméstica.
Kim Jiyoung começou a agir de forma estranha.
Kim Jiyoung está deprimida.
Kim Jiyoung é todas as mulheres.

«Comovente, inteligente e poderoso.» - Daily Telegraph"
Gostei muito deste livro. Apesar de ser uma história ficcional, nela se reveem muitas situações passadas pelas mulheres coreanas (e não só...) e que não ficam circunscritas aos anos de vivência da protagonista.
Acompanhamos o crescimento da protagonista e ficamos a conhecer as vivências das crianças, jovens e mulheres coreanas. Primeiro, a diferença que os pais estabeleciam logo entre filhos e filhas, sendo que aos primeiros era tudo mais facilitado. Depois, os próprios estudos e as saídas profissionais. As mulheres, quando muito, eram professoras. E, se acaso tivessem a sorte de arranjar um emprego (algo muito improvável), debatiam-se com o facto de não lhes ser concedido um cargo de relevo (muito menos de liderança), bem como também não tinham direito a licença de maternidade e, grande parte delas, acabava por deixar os seus empregos para conseguir tomar conta das crianças (já que, para além de que era difícil assegurarem uma ama para os filhos).
Aconselho!
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Professora de português e professora bibliotecária, apaixonada pela leitura e pela escrita. Preza a família, a amizade, a sinceridade e a paz. Ama a natureza e aprecia as pequenas belezas com que ela nos presenteia todos os dias.

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