Histórias Soltas Presas Dentro de Mim

Couto, Mia (2018). A Água e a Águia. Alfragide: Editorial Caminho.


No livro A Água e a Águia, escrito por Mia Couto e brilhantemente ilustrado por Danuta Wojciechowska, tudo se passa e passo a citar “quando não era ainda nenhuma vez”, num céu de aves sobre o último rio do mundo.
Quando, certa vez, deixou de chover, a sede invadiu plantas e animais e tudo começou a morrer. Das aves caíam penas secas. Até que a águia mais velha teve uma ideia e, decidida a enfrentar a desgraça, engoliu a letra i da palavra águia e transformou-a na água com que saciou a sua sede. Imitada por todas as aves, começaram a saciar a sede nos iis até que estes acabaram por esgotar, voltando a sede a invadir e a dominar as águias. Sequiosas de letras, mas desconhecendo o alfabeto da vida, lançaram-se a todos os iis, deixando até o rio sem i.
Questionando-se sobre o que é a letra i, depois de muitas sentenças, foi uma avó águia que propôs uma solução que passo a citar “a letra i era uma mulher carregando água na cabeça. O que as águias iriam fazer seria regurgitar essa mulher." E esta águia avó, com as últimas forças que lhe restavam, subiu ao cume da montanha e regurgitou todos os iis que tinha bebido, voltando a encher o rio. Por isso as águias sobrevoam as montanhas e, ao som do seu estridente piar, caem iis como gotas de chuva.
Uma história brilhante pautada pela linguagem poética e metafórica a que já nos habituou Mia Couto. Um livro imperdível!
                                                               Célia Gil
                                                                                           

Ciraolo, Simona (2017). O Rosto da Avó. Lisboa: Orfeu Negro.


Hoje trago uma sugestão um pouco diferente, um livro infantil para ser devorado em todas as idades.

Em O Rosto da Avó, de Simona Ciraolo, traduzido por Rui Lopes, no dia em que uma avó faz anos, questionada pela sua neta sobre a razão por que parece que está um pouco triste e preocupada até, a avó responde que talvez seja devido às linhas do seu rosto. 
Então, a neta decide questioná-la sobre cada uma das linhas do seu rosto e são deliciosas as respostas desta avó cujas memórias estão guardadas em cada ruga, como pequenos cofres que cobrem o seu rosto e o preenchem de vida.
                                                                                          Célia Gil
                                                                                                           

Faria, Rosa Lobato de (2010). Os Três Casamentos de Camilla S. Alfragide: Edições ASA.

     Numa narrativa pessoal, biográfica e emotiva, Os Três Casamentos de Camilla S, de Rosa Lobato de Faria, é um romance envolvente, que cativa não só pela intensidade das vivências narradas pela protagonista, como pela beleza e expressividade da linguagem, num ritmo que envolve e prende desde a primeira página.
     Aos 90 anos, Camilla, entrega à sua neta os seus diários, para que ela os reveja, corrija e os transforme num livro de, e paço a citar, “leitura amena e portuguesa”.
Camilla vive desde cedo com os tios, após a morte precoce dos pais, vítimas de tuberculose. Paca é a sua ama de leite, uma adivinha, mestre em artes da bruxaria, que a cria, a educa e que a acompanha ao longo da sua vida e a quem Camilla considera como a sua verdadeira mãe.
     Aos doze anos, os tios comunicam-lhe que casará com um médico, Monsieur Seabra, de pouco mais de quarenta anos e, de casamento marcado, Camilla apenas questiona se pode levar consigo as suas bonecas.
     Paca ensina-lhe tudo o que Camilla tem de saber sobre o casamento, a puberdade e a entrega ao marido, aconselhando-a a que, para ser feliz, deverá escutar o seu sangue, abrir-se ao mistério e entregar-se ao prazer. O marido, entretanto, aguarda pacientemente que ela se torne numa mulher.
     Quando Camilla faz 15 anos, o marido organiza um baile para a apresentar à sociedade. Nesse baile, Camilla dança com André Sobral, a quem deixa elogiar, cortejar e murmurar o desejo de um encontro no dia seguinte.
     É quando a vê nos braços de outro, que o marido se apercebe que já é uma mulher e que lhe pertence.
     Paca prepara-a para a noite em que Emídio pretende ensiná-la, para que nunca se esqueça, do que significa ser casada.
     Mas terá o seu envolvimento com André terminado, mesmo com o afastamento que se vai impondo entre eles?
     É em Londres que Camilla é mãe pela primeira vez e que perde o marido.
Regressa a Portugal para tentar recuperar a casa da Estrela, quando recebe uma carta a mencionar as dívidas que o marido deixou em Lisboa.
     Começa a trabalhar como pianista para uma modista da época, uma tal Madame Armandine, momento da vida de Camilla de que não se orgulha, mas que contribuiu para o seu amadurecimento.
     Volta a casar, desta feita com Salomão, um engenheiro abastado, com quem também vive um período de felicidade. Tem, entretanto, outro filho, desta vez de André.
     Este acontecimento acaba por levá-la a um divórcio.
     Casa-se, depois de alguns anos, com Alexandre, um antigo amigo da família, sogro do seu filho mais velho, que lhe proporciona uma felicidade serena, um companheirismo, cumplicidade e confiança, levando-a a prescindir da paixão.

     Passo a citar duas passagens nas quais Camilla resume bem o que significaram para ela os seus casamentos e a forma como vivenciou as suas relações:
     “Não sei se conseguirei acabar de contar a minha vida, se é que ela já não se contou a si própria. Mas pelo menos, gostaria de falar dos meus três casamentos porque eles pautam a vivência de três mulheres diferentes que são todas eu. Poderia considerar três ciclos que se interligam e se separam, se sobrepõem e se distinguem, que entre si se criticam, se julgam e se perdoam: o ciclo do sonho, o ciclo do corpo e o ciclo do coração. Espero serenamente o ciclo da alma”.
     “Pensa-se que uma mulher se deita com um homem sempre pelo mesmo motivo, mas não é assim. Há mil razões para uma mulher receber um homem no seu corpo. Ao longo da minha aventurosa vida deitei-me por obrigação, por paixão, por medo, por necessidade, por amor ou por prazer mas nunca, como com o Alexandre, por ternura infinita, por repouso secreto, por procura da paz.”
                                                                               Célia Gil



O livro de contos A Última Colina de Urbano Tavares Rodrigues é daqueles livros que pedem para ser lidos. Realista e crítico, não deixa de conciliar a intervenção social com um lirismo estonteante, bem como a realidade crua e dura com o fantástico, o onírico e um raio de luz a acender os olhos da esperança.

A abrir os contos, “Judas” é um conto que nos fala do confronto entre patrão e funcionários, no qual o patrão tenta convencer Jesualdo a ser seu mediador para com uma multidão em fúria. Jesualdo não se deixa subornar, nem mesmo quando é chamado de Judas por outros funcionários. Acaba por regressar a casa levando apenas na roupa as medalhas de sangue da derrota.
É do meio dos escombros, quando um grupo de jovens tenta socorrer os sobreviventes, após um sismo, que o narrador consegue ver um raio de esperança. Foi preciso um sismo para que em “Um Dia na Vida”, acordassem estes conservadores do seu ceticismo, para um empenho e fraternidade que o narrador pensara já não existirem.
Em “Aquém da Luz”, Jesualdo é um padre que cumpre os rituais de extrema-unção com a mesma aparente dignidade de sempre, apesar de há muito, depois de vastas leituras à margem da igreja, ter deixado de acreditar na religião e ter perdido a fé. Cumpre o ritual com Adosinda, sua iniciadora nos prazeres do corpo; com o Dr. Rego Cortês, um pecador que tentou violar a própria filha; uma mulher idosa que, vítima de maus tratos por parte do marido, confessa que o matou para se libertar. Sente-se dividido entre a repulsa e a solidariedade.
Nem sempre “A Mais Bela do Baile”, título de outro dos contos, acaba por ficar com o príncipe e vive feliz para sempre. Falena casa com um homem que lhe consome a herança no Casino do Estoril e que foge para Las Vegas, deixando-a com dois filhos. Nem sempre se aprende à primeira e Falena volta a envolver-se emocionalmente, desta vez com um homem casado, que acaba por optar pela família quando é descoberto pela mulher. O filho mais velho parte para a Alemanha em busca de riqueza e Falena fica a viver com o filho mais novo, um falhado, que não consegue arranjar emprego estável, vive às custas da mãe, deixa-se consumir pelo álcool e acaba por morrer num acidente.

Estes são apenas 4 dos 36 contos que compõem esta obra onde os nossos olhos descobrem frases tão belas como:
“Estávamos a meio da Primavera, o sol parecia latir nas paredes brancas e o seu peso aquecia-me os ombros”
“Adosinda, deitada de barriga para o ar, na cama baixa e um pouco descomposta, como um cobertor de lã excessivo sobre as ruínas do seu corpo, ergue para Jerónimo uns olhos implorativos”
 “…a divina mãe floresta…é a grande mãe universal, amantíssima consoladora, que por toda a parte se esconde e por vezes se recolhe na claridade dos rios, na névoa que outras vezes palpita nas matas. Ou nos lábios da própria terra gretada.”
“O dia amanheceu triste, com aves naufragando na brancura do espaço e sinais de ausência à minha volta”.

Entre contos que evocam memórias alentejanas, celebram os jubilosos dias de abril, trazem África e o desespero dos tempos coloniais, recordam Lisboa de outros tempos, lembram praias de Raúl Brandão, Urbano também aborda temas intensos como o nazismo, a Inquisição, o lesbianismo, a bruxaria, com um olhar atento, crítico, simultaneamente perplexo, onde a luz e os escombros se encontram e permanece a ideia de que a esperança se pode alcançar, ainda que seja necessário subir até à “Ultima Colina”.
                                                                               Célia Gil

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Professora de português e professora bibliotecária, apaixonada pela leitura e pela escrita. Preza a família, a amizade, a sinceridade e a paz. Ama a natureza e aprecia as pequenas belezas com que ela nos presenteia todos os dias.

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