Ti Elvira


Era uma mulher estranha. Na terra diziam que era bruxa, fazia todo o tipo de feitiços que lhe encomendavam. No entanto, no seu ar enrugado, desenhava-se um mistério infindável. Dos rasgados olhos negros emanava uma aura que a arrepiava, fazendo-a mudar o rumo dos seus passos, mal a via, cortando por qualquer outra ruela. Os cabelos, ralos já, finos, ressequidos e cansados, pareciam untados com um escuro azeite rançoso. Nas mãos, veias profundas, sinuosas como o rio Douro, pareciam rebentar a qualquer momento. E a voz? Essa era assustadoramente profunda, grave e cava.

Para uma criança da idade de Maria da Luz, de apenas dez anos, a Ti Elvira era misteriosamente medonha. E aquela imagem dormia com ela, ensombrando as suas noites, perseguindo os seus dias. Tinha consciência de que ela exercia sobre si um grande fascínio e poder. A qualquer momento seria capaz de transformar a sua vida. A ela cabiam as decisões sobre o futuro de Maria da Luz. Da Ti Elvira teriam vindo todas as maleitas que a caracterizavam até então: as suas sardas, o seu corpo franzino, os seus olhos esbugalhados, o seu cabelo de arame, os seus lábios sempre rebentados. De cada vez que a olhava, lhe aparecia algo que a irritava, que detestava nela mesma.

Durante anos Maria da Luz foi perseguida por este ser estranho, que lhe determinou o destino, que a martirizou toda a juventude, traçando-lhe o futuro sinuoso com que se depararia. Todas as controvérsias da vida provinham dela, só dela.

A família acreditava Maria da Luz pouco saudável, não só fisicamente como psicologicamente. E quando tentava queixar-se dos seus receios, ninguém se dignava a ouvi-la. Sempre franzina e doente, constituía um estorvo para todos. Além disso, nascera sem ser desejada, tendo o seu irmão mais velho completado vinte cinco anos. Os seus pais ralhavam muito um com o outro, acusando-se mutuamente pelo surgimento da “fedelha”. A mãe acusava o pai, por ela não ser saudável, lembrando-o constantemente das sovas que lhe dera durante a gravidez. Ele dizia-lhe que já então era velha e recordava-lhe que devia ter interrompido a gravidez. “A Antónia podia tê-lo feito”, ele até falara com ela!” Mas a mãe de Maria da Luz logo se interpunha, arreganhando os dentes ferozes para lhe atirar à cara que ele tinha um caso com a Antónia. De todos, apenas a sua prima Teodora se dignava a falar-lhe, a perguntar-lhe como ia, sem, no entanto, lhe dar muita confiança, não fosse Luz abusar.

Foi precisamente a Teodora que, para ver se ela deixava de falar de bruxas, lhe levou um romance. Começou a lê-lo e a evitar, a todo o custo, a bruxa, nunca passando na sua rua, fugindo dos locais que frequentava e que ela conhecia tão bem, inclusive as horas a que os frequentava. Mas foi por pouco tempo. Aos poucos, o romance adquiriu novos contornos e a personagem principal passou a ser ela. Tudo quanto lia lhe fazia crer que, estando ela a evitá-la, lhe surgia de outra forma, por meio do romance que lia. Não aguentou muito mais tempo. Ao mesmo tempo que a receava, ansiava vê-la.

Certo dia, passando Luz à sua porta, ela chamou-a com a sua voz cava. Ao olhar para a janela, da qual lhe chegava a voz arrastada dela, pediu-lhe que lhe fizesse um favor, que estava doente e só ela poderia ajudá-la. Entregou-lhe uma lista de compras, no mínimo estranha, de onde constavam velas, incensos, azeite... Atirou-lhe um saco com uns trocos. Esse dia, marcado no calendário da sua vida há tanto tempo, surgiu como inevitável, como o dia previsto para a mudança que se efectuaria na vida de Luz. Quando chegou com as compras, o seu coração batia ansiosamente, desenfreadamente, com a previsibilidade da aproximação à bruxa. E ao receio se misturava uma curiosidade profunda. Da janela ainda, pediu-lhe que entrasse, a porta estava aberta. O coração começou a bater mais forte, e foi com toda a coragem possível que abriu o trinco da porta. Invadiu-a o cheiro a incenso. Por entre a escuridão das escadas, apenas se viam algumas velas quase derretidas. Era um ambiente, no mínimo, constrangedor, quanto mais não fosse, porque contrastava com a claridade do dia, de um sol profundo, e da casa de Luz, sempre iluminada. Subiu as escadas com pernas trémulas, não sabia se devia continuar ou fugir, deixando as compras ao fundo das escadas. No fundo, tinha vontade de prosseguir e continuou a subir as escadas, com os olhos ainda mais esbugalhados do que já eram.

Lá em cima, uma sala simples, em tons profundamente vermelhos, parecia repleta de chamas. Seria o inferno? Teria ela morrido e chegado ao julgamento final? Foi então que a viu, a um canto, numa cadeira de baloiço, a olhá-la, estranhamente. Pousou os sacos e, já se ia embora, quando ela proferiu “ deixa-te estar miúda! Podes ajudar-me, tenho muito que te ensinar”. Parou imediatamente, estupefacta. No olhar triste de Elvira brilhava uma nova luz, pareceu-lhe até que lhe nascera uma nova esperança.

Voltou, durante dias, meses, anos. Voltou e, aos poucos, deixou-se envolver por aquele ambiente fascinante, pelas rezas feitas com incenso a arder em azeite. Quando recebia clientes, Luz ficava atrás da cortina da sala. Não queria represálias por parte dos seus pais. Se eles soubessem, proibi-la-iam de frequentar aquele antro, segundo designação do seu pai, que condenava aquelas profanações, que nada tinham que ver com a religião católica, que professava. Ouvia as súplicas, os choros, os pedidos de ajuda e ficava estupefacta perante a ida de pessoas que supunha católicas, que diariamente criticavam a bruxa e que, agora, soluçavam para ela, como se fora ela o seu ente divino. Quando saiam, ajudava-a a fazer as rezas. Já as conhecia de cor e parecia ter nascido e vivido sempre naquele ambiente.

Um dia, a Ti Elvira, disse-lhe que sempre esperara por ela, que a sabia sua seguidora, antes mesmo de ter nascido. Teria aguardado ansiosamente pelo momento mais oportuno, pelo momento que lhe fora comunicado.

A certa altura, a mãe de Luz estranhou as suas longas ausências, já que nunca fora de sair de casa. Começou a matutar e concluiu, sem a questionar, que deveria andar enrolada com alguém, para os lados do rio. Foi procurá-la e, não a encontrando, disse ao pai. Este abordou-a. Nada lhe disse, limitou-se a olhar para ele com um olhar inexpressivo, que o levou a bater-lhe até a deixar de cama.

Durante uma semana Luz não pôde levantar-se, mas via que as coisas lá em casa não iam bem, a mãe queixava-se de que a horta não vingava, os animais definhavam e a comida iria escassear nesse ano. Não entendiam, porque o mal não era geral, o restante povo gabava o ano das colheitas como fértil. À cabeça de Luz acorreu a ideia de que a bruxa teria previsto o motivo da sua ausência e se vingava. Logo que pôde, pôs-se de pé e, sem que dessem pela sua ausência, foi a casa dela, que logo sorriu ao vê-la e lhe confessou que não quisera provocar mal à sua família, mas que os espíritos, apercebendo-se do seu sofrimento, ter-se-iam vingado.

O que é certo é que tudo continuava extremamente difícil e dias piores se avizinhavam.

Quando começaram a passar necessidades, parece que todos os males vieram atrás. O Zé, seu irmão mais velho, perdeu o emprego que tinha nas minas. O irmão do meio, o Tonho, sofreu um acidente de motorizada, ficando impossibilitado de trabalhar na fazenda. E Luz pouco ou nada sabia fazer. Não tinha capacidades intelectuais, segundo a sua mãe e “era uma tonta sem eira nem beira” nas palavras do pai. Assim, com os seus pais entregues a uma fazenda estéril, a fome começou a reinar em casa deles, trazendo com ela a discórdia, duplicando as sovas que o pai dava à mãe, dando vazão ao provérbio “casa onde não há pão, todos ralham e ninguém tem razão”. E Luz foi praticamente encarcerada no seu quarto, saindo apenas para pequenas tarefas domésticas e para comer umas migas de pão seco com água.

Foi nesse isolamento que começou a conceber um plano diabólico. Sentiu-se confrontada com o ser maléfico que todos nós possuímos, mas que nem sempre se revela. E, naquela altura, era como se esse ser se impusesse, crescesse e adquirisse proporções que ela própria desconhecia. Até àquele momento, o seu pecado era a Ti Elvira, no entanto essa obsessão acordou o monstro em si adormecido, com um crescente ódio por ela. Se até então o que Luz sentia pela bruxa era uma admiração que ela própria não compreendia, percebeu exactamente o sentimento que por ela nutria- um ódio tão profundo que seria capaz de a levar a tomar atitudes horríveis e inconcebíveis.

Noite e dia costurou, nas paredes do seu quarto, o seu plano mirabolante. E aos poucos ela era a aranha que prendia, nas suas teias a pobre mosca Elvira. Agora, era ela que a dominava e não ao contrário, como sempre fora. Finalmente venceria os seus medos e revelaria o ser imundo que existia em si. Numa noite, em breve, sairia às escondidas de casa e acabaria com a vida dela, de uma forma como só um ser com muito ódio o faria...
                                                                      Célia Gil

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