Ernaux, Annie (2020). Os Anos. Porto: Porto Editora.
Nº de páginas:
200
Início da
leitura:
Fim da leitura:
20/02/2021
Este
livro, Os Anos de Annie Ernaux, traduzido por Maria Etelvina Santos, é
um livro excecional. Muito bem escrito, muito completo, um livro que nos faz
refletir, que nos envolve, nos devolve vivências guardadas na memória, nos dá a
conhecer livros, filmes, músicas (de tal forma, que damos por nós a ir pesquisar
e a encontrar algumas pérolas literárias, musicais e cinematográficas). Não é,
por isso mesmo, um livro de leitura rápida, exige um compromisso, tempo de
reflexão que nada têm a ver com o fugaz, apesar de a maior parte dos acontecimentos
narrados terem sido vítimas da frugalidade da própria vida. Mas é literatura,
sim! Quem gosta de verdadeira e boa literatura, vai inevitavelmente gostar
deste livro.
Os
acontecimentos d’Os Anos são-nos apresentados como imagens, flashes que
compõem, de certa forma, uma autobiografia impessoal. Há um observar de fora
para dentro. Uma interpretação. As imagens são efémeras, permanecem na memória
as imagens seletivas. E é incrível como tendemos, ao longo da vida, a replicar
imagens aparentemente gastas. Com o tempo, estamos a ser o que foram os pais e
até os avós. Estamos a replicar o que criticávamos. Estamos a valorizar o que
menosprezávamos.
Muitas
foram as passagens que assinalei com post-it, passagens que, de alguma forma,
me fizeram refletir ou, simplesmente, sorrir. Exemplifico com o momento em que
a narradora menciona o presente, em que o casal tem mais valor do que o
solteiro. Em que tudo o que criticavam nos pais, é reproduzido – o casamento, a
obsessão pela ascensão social, profissional e material. É um presente em que o
ter suplanta o ser. O ser que sonhava, que queria saber, que chocava,
desafiava, não se conformava, ficou no passado, do qual se sente uma saudade
quase narcísica, um desejo de se desprender desta burguesia comezinha que se
aceitou e voltar ao passado, onde ainda não havia eta preocupação com o
material. É incrível como a narradora aborda temas tão pertinentes e tão atuais
e como conseguimos perceber que nem sempre evoluímos. Quando pensamos, por
exemplo, em momentos em que a mulher se impôs e se afirmou na sociedade, somos
levados imediatamente a pensar “onde está essa mulher que lutou pelos seus
direitos? Acomodada?” E são tantos os temas! Abordados de forma crua e irónica.
Preservam-se
estas imagens d’Os Anos na memória, onde ficam, de forma seletiva, registos
de acontecimentos, de músicas que ouvimos e, num determinado momento, nos
marcaram, de livros que lemos, de escritores com que nos identificámos. Como se
a nossa memória tivesse pequenas gavetas, que vamos abrindo sempre que nos
sentimos afastar de quem realmente somos. Por vezes, sentimos necessidade de
recuperar essas memórias. Outras, surgem naturalmente quando, por exemplo, as
associamos a uma vivência presente. Outras, ainda, quando olhamos para trás
numa reflexão sobre o que foi e tem sido a nossa vida.
Escusado
será dizer que adorei este livro. Um pequeno grande livro!
Ficaria
aqui a fazer uma cópia de todo o livro para poder exemplificar a dimensão de
tudo o que nos transmite e prende a atenção. Porém, como não o posso fazer,
destaco apenas algumas passagens:
-
A propósito do ano de 1968: “Todos podiam usar da palavra, quer representando
um grupo, uma condição ou uma injustiça, tinham direito a falar e a serem
ouvidos, fossem ou não intelectuais. Ter passado por uma determinada
experiência enquanto mulher, homossexual, dissidente de uma classe,
prisioneiro, agricultor, mineiro, concedia-lhes o direito de falar em nome próprio,
de dizer eu. (…) Saíamos dos debates de duas horas sobre a droga, a
poluição ou o racismo, numa espécie de embriaguez e, no fundo, com a
consciência de não ter ensinado nada aos alunos, questionando se não estaríamos
a trabalhar para aquecer, mas ainda assim pensando que a escola servia
para alguma coisa.” (pp.86-87)
“As
vergonhas de antigamente já não faziam sentido. A culpabilidade era
ridicularizada: somos todos judaico-cretinos, a infelicidade sexual
denunciada, falta-de-prazer o pior insulto. (…) O discurso do prazer
suplantava tudo. Era preciso ter prazer a ler, a escrever, a tomar banho, a defecar.
A finalidade de qualquer atividade humana era o prazer. Pensávamos na nossa
história, no que era ser mulher. Percebíamos que não tínhamos tido a nossa
parte de liberdade sexual, criativa, em relação a tudo o que é concedido ao
homem. (…) percorríamos as nossas vidas retrospetivamente, sentíamo-nos capazes
de deixar marido e filhos, de nos desligarmos de tudo e de escrever com
crueldade. (…) Um sentimento comum a muitas mulheres estava em vias de
desaparecer – o da sua inferioridade natural.” (pp.88-89)
“É
verdade que todas as causas estavam ao rubro, comités de estudantes do liceu, autonomistas,
ecologistas, antinucleares, objetores de consciência, feministas, homos, todos
se exaltavam, mas não se uniram.” (pág. 99)
E
mais, muitos exemplos teria de destacar! Sobre a II Guerra Mundial, sobre tudo
e nada!
Leiam,
vão gostar!
Célia Gil
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