O
livro de contos A Última Colina de Urbano Tavares Rodrigues é daqueles livros
que pedem para ser lidos. Realista e crítico, não deixa de conciliar a
intervenção social com um lirismo estonteante, bem como a realidade crua e dura
com o fantástico, o onírico e um raio de luz a acender os olhos da esperança.
A
abrir os contos, “Judas” é um conto que nos fala do confronto entre patrão e
funcionários, no qual o patrão tenta convencer Jesualdo a ser seu mediador para
com uma multidão em fúria. Jesualdo não se deixa subornar, nem mesmo quando é
chamado de Judas por outros funcionários. Acaba por regressar a casa levando apenas
na roupa as medalhas de sangue da derrota.
É
do meio dos escombros, quando um grupo de jovens tenta socorrer os sobreviventes,
após um sismo, que o narrador consegue ver um raio de esperança. Foi preciso um
sismo para que em “Um Dia na Vida”, acordassem estes conservadores do seu
ceticismo, para um empenho e fraternidade que o narrador pensara já não
existirem.
Em
“Aquém da Luz”, Jesualdo é um padre que cumpre os rituais de extrema-unção com
a mesma aparente dignidade de sempre, apesar de há muito, depois de vastas leituras
à margem da igreja, ter deixado de acreditar na religião e ter perdido a fé.
Cumpre o ritual com Adosinda, sua iniciadora nos prazeres do corpo; com o Dr.
Rego Cortês, um pecador que tentou violar a própria filha; uma mulher idosa
que, vítima de maus tratos por parte do marido, confessa que o matou para se
libertar. Sente-se dividido entre a repulsa e a solidariedade.
Nem
sempre “A Mais Bela do Baile”, título de outro dos contos, acaba por ficar com
o príncipe e vive feliz para sempre. Falena casa com um homem que lhe consome a
herança no Casino do Estoril e que foge para Las Vegas, deixando-a com dois
filhos. Nem sempre se aprende à primeira e Falena volta a envolver-se
emocionalmente, desta vez com um homem casado, que acaba por optar pela família
quando é descoberto pela mulher. O filho mais velho parte para a Alemanha em
busca de riqueza e Falena fica a viver com o filho mais novo, um falhado, que
não consegue arranjar emprego estável, vive às custas da mãe, deixa-se consumir
pelo álcool e acaba por morrer num acidente.
Estes
são apenas 4 dos 36 contos que compõem esta obra onde os nossos olhos descobrem
frases tão belas como:
“Estávamos
a meio da Primavera, o sol parecia latir nas paredes brancas e o seu peso
aquecia-me os ombros”
“Adosinda,
deitada de barriga para o ar, na cama baixa e um pouco descomposta, como um
cobertor de lã excessivo sobre as ruínas do seu corpo, ergue para Jerónimo uns
olhos implorativos”
“…a divina mãe floresta…é a grande mãe
universal, amantíssima consoladora, que por toda a parte se esconde e por vezes
se recolhe na claridade dos rios, na névoa que outras vezes palpita nas matas.
Ou nos lábios da própria terra gretada.”
“O
dia amanheceu triste, com aves naufragando na brancura do espaço e sinais de
ausência à minha volta”.
Entre
contos que evocam memórias alentejanas, celebram os jubilosos dias de abril,
trazem África e o desespero dos tempos coloniais, recordam Lisboa de outros
tempos, lembram praias de Raúl Brandão, Urbano também aborda temas intensos
como o nazismo, a Inquisição, o lesbianismo, a bruxaria, com um olhar atento, crítico,
simultaneamente perplexo, onde a luz e os escombros se encontram e permanece a
ideia de que a esperança se pode alcançar, ainda que seja necessário subir até
à “Ultima Colina”.
Célia Gil
Célia Gil
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