O pacto


Maria sabe que o pai tivera razão. Como todos os pais. Como quase todos os pais. Como tão sabiamente o seu sabia ter.
Olhando para trás, vê levitar, fora do tempo e do espaço, um tempo que se esfuma na memória e, pela névoa do seu olhar, consegue ainda vislumbrar, muito para lá de qualquer tempo, os seus próprios olhos cor de terra molhada, muito abertos, muito despertos, curiosos de vida. Olhos de criança, no tempo em que os sonhos ainda são pássaros a pousar no ombro e onde não mora a solidão e a ausência.
Não sabe bem quando uma névoa toldara o brilho dos seus olhos grandes. Provavelmente, o mundo era demasiado grande e seria tão fácil perder-se nele…
Tem muito presente a voz do pai a sonhar-lhe futuros risonhos, a afagar-lhe o rosto com uma mão de amor, a aspereza e rigor do que dizia a traçar-lhe hipóteses de percursos de vida, a intransigência e a exigência a erguer-lhe a face ante as maiores dificuldades, para que as pudesse ver bem de frente e deixar de as temer.
Fora uma criança teimosa e arredia. E fora essa marca da sua personalidade que, na adolescência, a levara a decidir que não queria mais continuar a estudar. Os pais não tinham estudado e tinham conseguido singrar na vida, exercer a sua profissão, sem nunca terem passado por grandes dificuldades.
Apesar de a sua decisão ter sido uma mão fria e certeira numa bofetada no coração dos pais, a reação não foi a que esperava. Não houvera gritos, ameaças, nada…E isso, de certa forma, tinha-a deixado apreensiva. Afinal o que esperariam eles dela? Estariam já à espera do seu fracasso? Seria mesmo incapaz de prosseguir e a sua decisão não constituía mais um capricho?
Porém, quando menos esperava, quando já nem esperava, o pai, que tão sabiamente sabia ter razão, teve uma conversa com ela.
- Maria, estás a tomar uma decisão que condicionará todo o teu futuro. Por isso, terás de pensar muito bem e não decidir nada de ânimo leve. Entre nós, desde o momento em que fomos pais, houve um pacto. Um pacto de amor, o de zelarmos por ti, pelo teu futuro, pela tua felicidade. E, para fazer face a esse futuro, é preciso adquirir conhecimento. Se aceitarmos a tua decisão sem nada ponderar, estamos a aceitar e a compactuar com a tua desilusão futura, com o ser frágil e inábil em que te tornarás. Por outro lado, se nos opusermos de forma radical, como provavelmente estarias à espera, acabarás por fazer o mesmo: nada. Nada por ti. Acabarás por reprovar, na tua decisão contrariada. Se continuarmos o braço de ferro, voltarás a reprovar até provares que a decisão de abandonar os estudos é a mais sensata.
Não queremos que desistas de ti, não queremos que quebres o pacto que fizemos desde que nasceste: lutar pelo que é sempre o melhor para ti. Não seremos nós a quebrá-lo. Gostaríamos que também não o fizesses. Preocupamo-nos contigo. Estaremos aqui para te ajudar a levantar quando algum obstáculo te derrubar. Mas, queremos, sobretudo, que aprendas a levantar-te sozinha. Só tu poderás escolher entre ficar na escuridão do charco em que caíres ou te reergueres para renasceres para a vida. E há tanta gente que vive toda a vida nesse charco…Não foi esse o nosso pacto.
Entendia, agora, muito bem o que o pai lhe tentara dizer. Afinal, eles só queriam que nos seus olhos cor de terra molhada continuasse a morar o brilho da curiosidade e a sede do saber. As palavras do pai foram decisivas nas suas escolhas, no seu percurso de vida. Reconhecia que o pai, que tão sabiamente o sabia ser, ter-lhe-ia facultado a chave da vida.
Pensativa, Maria olhava o horizonte, um horizonte com percalços. Quem os não tem? Mas era, com efeito, um horizonte com história, com futuro, com o presente que sonhara para si. Soubera cumprir o pacto de amor.
                                                                                Célia Gil


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