Canção Doce, Lëila Slimani

Slimani, Lëila (2017). Canção Doce. Lisboa: Alfaguara Portugal.

Nº de páginas: 216

Início da leitura: 14/03/2021

Fim da leitura: 16/03/2021

Canção Doce é um romance escrito por Lëila Slimani, traduzido por Tânia Ganho e que venceu o Prémio Goncourt 2016.

Começo desde já por dizer que fui agradavelmente surpreendida por este livro. Não conhecendo ainda a escritora, escolhi este livro pela capa, pela sinopse e pelo prémio conquistado. Poderia, porém, constituir uma desilusão, o que não sucedeu.

Gostei da forma como Slimani escreve, uma escrita muito cinematográfica, com uma espécie de flashes, que, sem desvendarem tudo, nos instigam o pensamento e nos conduzem a conclusões pessoais. Senti que, ao longo da história, fui criando as personagens na minha cabeça e fui-as acompanhando, com a alma a sentir-se pequenina, o coração ao pé da boca, numa ansiedade crescente. Quando isto acontece, é porque o livro mexe connosco, nos envolve, nos obceca. Numa linguagem crua se cria uma história dura e tensa que nos deixa, muitas das vezes, angustiados e, ao mesmo tempo, expectantes. É daqueles livros que, apesar de nos angustiar, não conseguimos largar.

O livro começa com a morte de duas crianças às mãos de uma ama. É então que se inicia a narração de todos os acontecimentos que levaram a este presumível homicídio.

Myriam e Paul são pais de duas crianças, Mila e Adam. Até então, Myriam era mãe a tempo inteiro. Porém, começa a sentir necessidade de voltar a trabalhar e é convidada a fazê-lo num escritório de advocacia. De entre muitas hipóteses bem ponderadas de arranjar uma ama para os filhos, estes pais, acabam por contratar Louise. Esta é retratada como uma mulher pequenina, branca, como uma boneca de cera, com uma força muito pouco condizente com a sua franzina estrutura física. Revela, desde logo, uma capacidade maternal que conquista as crianças e os pais. Para além de ama, acaba por fazer todos os serviços domésticos de forma irrepreensível, o que os deixa muito admirados, ao ponto de a levarem com eles de férias.

Porém, aos poucos, o casal vai-se apercebendo de que talvez esta dedicação toda, as imensas fotografias das crianças com que os bombardeia diariamente, não são muito normais. Porém, apesar de algum desconforto que começam a sentir, sabem que nunca conseguirão uma ama como esta. Literalmente, ela começa a invadir as suas vidas, de tal forma que, enquanto leitora, me senti sufocar.

Há nestas personagens uma critica latente à sociedade moderna, às relações sociais e familiares atuais, às prioridades definidas no seio da família. Mas há também muito de real. Quantas vezes nos questionamos se a vida que temos é, com efeito, a que desejamos? E, até quando aguentamos? A par disto, há uma ideia muito típica do existencialismo, que coloca no homem toda a responsabilidade pelos seus atos e pelas decisões que toma na vida. Podemos considerar que alguém é incapaz de matar, até ao momento em que a pessoa se vê confrontada com a possibilidade de matar.

O final, ainda que anunciado logo no início da narrativa, deixa-nos, porém, o desejo de saber mais, de desejar que existisse algo mais, mais acontecimentos que justificassem o sucedido. Mas, como em tudo na vida, nem sempre há explicações. As coisas acontecem, porque têm de acontecer.

Deixo apenas algumas das passagens que me fizeram refletir:

“Também há algumas mães, mães de olhar vago. Uma cujo parto recente a retém na orla do mundo e que, no banco, sente o peso da barriga ainda flácida. Carrega o seu corpo de dor e de secreções, o seu corpo que cheira a leite azedo e a sangue. Essa carne que ela arrasta e à qual não dá atenção, nem repouso.”

(Paul) “Parecia-lhe que reinava no quarto um cheiro estranho. O mesmo cheiro das lojas de animais, e da beira-rio, onde por vezes levavam Mila ao fim de semana. Um cheiro a secreções e a clausura, a mijo seco numa cama de gato. Aquele cheiro enjoava-o.”

“Mas agora não havia volta a dar, não podia dizer que afinal já não queria aquela vida. Os filhos ali estavam, amados, adorados, jamais postos em causa, mas a dúvida insinuara-se em todos os recantos.”

 

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