Histórias Soltas Presas Dentro de Mim

Sukegawa, Dirian (2025). Os Gatos de Shinjuku. Lisboa: Edições ASA.

Tradução: Ana Marta Caio
N.º de páginas: 224
Início da leitura: 08/11/2025
Fim da leitura: 11/11/2025

**SINOPSE**
"No coração de Tóquio, o bairro de Shinjuku resiste à proliferação de arranha-céus e à azáfama da vida moderna. Neste pequeno mundo de ruínas sublimes e lanternas coloridas, encontra-se um bar chamado Karinka, abrigo de eleição de pessoas excêntricas e gatos vadios. É aqui que dois jovens se conhecem: Yama, um argumentista de televisão daltónico; e Yume, a tímida empregada de mesa e protetora dos muitos felinos da zona. À medida que estes dois seres solitários ganham a confiança um do outro, a amizade parece tornar-se em algo mais profundo, mas o passado de Yume teima em não ficar para trás...

A exuberância das noites de Tóquio é o pano de fundo de Os Gatos de Shinjuku, uma história feita de encontros - humanos e felinos -, vidas intrincadas, poesia palpitante e redenção. Terno e original, é um romance inesquecível."
Situado no bairro muito frequentado e, por vezes, cruel de Shinjuku, em Tóquio, o romance conduz-nos por ruas onde se cruzam sonhos desfeitos, vidas à margem e pequenos gestos de bondade que resistem à indiferença. Sukegawa tem o dom de transformar o quotidiano urbano em poesia, uma poesia discreta, que se insinua nas entrelinhas e nas pausas do texto.

O livro aborda temas complexos: a empatia como forma de resistência, os amores impossíveis que nascem em contextos adversos, e a violência silenciosa das relações de poder, sobretudo no mundo laboral. No entanto, o autor nunca cede ao melodrama nem à moralização. A dor está presente, mas é tratada com uma doçura que nunca é ingénua. É precisamente nessa tensão entre a dureza da realidade e a suavidade da linguagem que reside a beleza da obra.

Os “gatos” do título funcionam como metáfora dos próprios protagonistas: seres livres e vulneráveis, que procuram um lugar de pertença num mundo que parece sempre prestes a expulsá-los. Há algo de profundamente universal nesta procura por abrigo e afeto.

A escrita de Sukegawa é poética, mas nunca excessiva. Cada frase parece cuidadosamente medida, como se o autor procurasse o equilíbrio entre a leveza do haiku e a densidade da prosa contemporânea. O resultado é uma leitura que se desenrola com a serenidade de uma canção triste, dessas que ecoam muito depois de terminarem.
Gostei!

Farré, Gemma Ventura (2025). A Lei do Inverno. Lisboa: Alma dos Livros.

Tradução: Rita Custódio
N.º de páginas: 112
Início da leitura: 07/11/2025
Fim da leitura: 08/11/2025

**SINOPSE**
"A Lei do Inverno é um convite a reconhecer a beleza dos laços intangíveis, a aceitar o ciclo da perda e a escutar o murmúrio daqueles que nos guiam, mesmo quando já partiram.

No silêncio suspenso do inverno, quando as cerejeiras se despem e a casa se enche de suaves ecos, uma jovem vela o avô. Em profunda solidão, discorre entre a memória e a imaginação, descobrindo que as presenças mais profundas são, por vezes, feitas de ausência.

Gemma Ventura Farré tece uma ode delicada ao invisível — aquilo que não se vê, mas que permanece: as vozes que nos sussurram ao ouvido, o amor que resiste ao tempo, a saudade que ilumina os dias e a forma como superamos cada ausência.

Num registo íntimo e mágico, esta é uma história destinada a tocar quem a lê. Celebra a delicadeza, a força do coração e o poder da imaginação, e recorda-nos de que, para renascer, é necessário, antes de mais, deixar ir."
Quando comecei a ler este livro, não sabia exatamente o que esperava, apenas me apercebi de que falava da morte, que nos é dada inclusive pelo título, uma vez que o inverno simboliza a morte. Sabia, contudo, dado o tema, que seria um livro difícil de ler e pesado. Mas não, foi uma leitura que me surpreendeu, pela tranquilidade com que a morte é encarada, como se fosse um fechar de pálpebras do inverno. A capa é encantadora, pelo que recorri a ela em muitas passagens. Por vezes, tenho necessidade de ir revendo a capa para pensar na própria história narrada.

A história nasce do gesto íntimo de uma jovem que vela o avô. O cenário é minimalista e, nele, imperam o frio, o silêncio, a casa, o corpo ausente (e é precisamente neste vazio que se faz o eco da memória). A narradora mergulha nas suas lembranças e nas das gerações que a antecederam, num movimento que transforma o luto em genealogia afetiva. As presenças que a rodeiam são feitas de ausências; as vozes, de silêncios. Farré constrói assim uma narrativa que é menos sobre acontecimentos e mais sobre perceções, sobre o modo como o tempo e a morte moldam a nossa identidade e o nosso olhar sobre o mundo.

A linguagem é de uma beleza subtil e profundamente poética. Cada frase parece escrita com a cadência de um poema em prosa, onde o ritmo e a imagem ganham mais peso do que a própria ação. Essa escolha estilística confere à leitura uma leveza inesperada, como se o lirismo fosse uma forma de salvação perante a finitude. 

Aconselho! 

 Rulfo, Juan. Pedro Páramo. Lisboa: Cavalo de Ferro, 2017.

Tradução: Rui Lagartinho e Sofia Castro Rodrigues

N.º de páginas: 147

Início da leitura: 05/11/2025

Fim da leitura: 07/11/2025

**SINOPSE**

"«Álvaro Mutis subiu, a passos largos, os sete pisos da minha casa com um pacote de livros, separou do monte o mais pequeno e curto e disse-me, morto de riso:
— Leia isto, carago, para que aprenda!
Era Pedro Páramo.
Nessa noite não consegui adormecer enquanto não terminei a segunda leitura. Nunca, desde a noite tremenda em que li A Metamorfose, de Kafka, numa lúgubre pensão para estudantes em Bogotá — quase dez anos antes —, eu sofrera semelhante comoção (…).
Não são muito mais de 300 páginas, mas são quase tantas, e creio que tão perduráveis, como aquelas que conhecemos de Sófocles.»
Do texto introdutório de Gabriel García Márquez, Prémio Nobel de Literatura

A obra de Juan Rulfo influenciou de forma decisiva autores distinguidos com o Prémio Nobel de Literatura, como Gabriel García Márquez e Octávio Paz."
Ler Pedro Páramo é entrar num labirinto de ecos, vozes e sombras. A breve, mas densa, narrativa de Juan Rulfo transporta-nos para Comala, uma aldeia mexicana fustigada pelo calor e pela memória, onde a fronteira entre os vivos e os mortos se dissolve num murmúrio constante. É nesse espaço espectral que acompanhamos Juan Preciado, um jovem que parte à procura do pai que nunca conheceu, o temido e enigmático Pedro Páramo. Contudo, o que parecia ser uma viagem de reconciliação, transforma-se num mergulho no irreal, num mundo em que o tempo se fragmenta e as almas se confundem.
Rulfo constrói Comala como um lugar suspenso, onde a morte não significa esquecimento, mas antes uma persistência da culpa e do desejo. À medida que Juan percorre as suas ruas, apercebemo-nos de que os habitantes não são verdadeiramente vivos: são vozes presas num ciclo de arrependimento e lembrança. A revelação de que todos estão condenados a permanecer em Comala, não apenas por conhecerem Pedro Páramo, mas por serem cúmplices, vítimas ou reflexos da sua tirania, confere à narrativa uma dimensão quase bíblica, em que o castigo e a redenção se confundem.
O elemento que une estas personagens é, de facto, o mais fascinante da obra: a condenação à repetição e à solidão eternas. Rulfo não oferece saídas nem consolações; o leitor, tal como Juan Preciado, afunda-se na atmosfera sufocante de Comala, sentindo o peso de um passado que nunca se extingue. A ausência de linearidade reforça essa sensação de desorientação. Os acontecimentos sobrepõem-se, as vozes misturam-se, e o tempo torna-se circular, como se estivéssemos presos na própria respiração da terra.
Essa estrutura fragmentada pode, à primeira leitura, causar estranheza, mas é precisamente ela que dá à obra a sua força poética. A linguagem de Rulfo é seca e fulgurante, marcada por um lirismo contido que traduz a aridez do cenário e das emoções. A simplicidade do estilo contrasta com a complexidade simbólica da narrativa, fazendo de Pedro Páramo uma das obras fundadoras do realismo mágico latino-americano, anterior até à consagração do género por Gabriel García Márquez.
No fim, a viagem de Juan Preciado é também a do leitor: uma travessia para um território onde a memória se confunde com o sonho, e onde a morte não é um fim, mas um estado de permanência. Pedro Páramo não é apenas um romance sobre um homem e o seu poder, é um retrato de um país, de uma cultura e de uma humanidade presa aos fantasmas do passado.
Seja lido como alegoria, mito ou lamento, o livro de Rulfo é uma experiência literária inesquecível: uma viagem sem volta ao coração do México e da própria condição humana. Não é um livro indicado para quem prefere leituras mais "leves".

Torrado, António: Pimentel, Tiago (2016). Milagre de Natal. Lisboa: Edições ASA.

Início e fim da leitura: 04/11/2025

**SINOPSE**

"O que para o Pai Natal foi um azar - a aterragem acidentada do seu trenó e, consequentemente, uma pilha de presentes espalhados pelo chão - para um menino e para um certo cãozinho de orelhas caídas foi uma grande sorte. Ou, mais do que isso, foi um verdadeiro milagre de Natal!"

Milagre de Natal, escrito por António Torrado e ilustrado por Tiago Pimentel, é um conto que se inscreve na tradição das histórias natalícias que procuram despertar a empatia e o sentido de solidariedade. A narrativa, aparentemente simples, centra-se num pequeno cão que, na véspera de Natal, se deixa encantar pelas luzes e sons da cidade e acaba por se perder do seu lar. A partir desse momento, o leitor é conduzido por um percurso de solidão e desamparo, vivido através do olhar inocente e confuso do animal, uma perspetiva que, mais do que infantil, é profundamente humana.
O texto de António Torrado, conhecido pela sua sensibilidade e capacidade de falar aos leitores de todas as idades, combina ternura e crítica social. Ao colocar o leitor na pele de um ser indefeso e esquecido em plena azáfama natalícia, o autor denuncia, de forma subtil, o egoísmo e a distração de uma sociedade que, mesmo em tempo de celebração e fraternidade, se esquece de olhar para o outro. O “milagre” que o título anuncia não é apenas um evento mágico, mas também a possibilidade de redenção humana, o despertar de um gesto de bondade num mundo apressado e indiferente.
As ilustrações de Tiago Pimentel desempenham um papel essencial na construção emocional do conto. Com traços delicados e cores que oscilam entre o calor do lar e o frio da cidade, as imagens reforçam a dualidade entre o conforto perdido e a esperança de reencontro. Cada página parece convidar o leitor a abrandar o ritmo, a olhar com atenção, a sentir, em perfeita sintonia com o tom poético e reflexivo do texto.
Milagre de Natal é, assim, mais do que uma história para crianças: é uma parábola moderna sobre empatia e compaixão, que nos recorda a importância de estender a mão (ou o olhar) a quem mais precisa. Numa época tantas vezes dominada pelo consumo e pela pressa, este pequeno livro é um apelo silencioso à humanidade e talvez esse seja, afinal, o verdadeiro milagre que António Torrado e Tiago Pimentel nos oferecem.

Lispector, Clarice. Felicidade Clandestina. Rio de Janeiro: Rocco Digital, 2013.

N.º de páginas: 160
Início da leitura: 01/11/2025
Fim da leitura: 03/11/2025

**SINOPSE**

Nesta coleção de vinte e cinco textos, reunimos alguns contos e crônicas publicadas nos livros A legião estrangeira, Para não esquecer e A descoberta do mundo. Temas caros ao universo clariceano estão presentes neste livro: a relação mágica com os animais, a descoberta do outro, as inúmeras possibilidades de se escrever uma história, a presença do inesperado no cotidiano previsível. Nos textos de cunho autobiográfico é possível flagrar, por exemplo, momentos da infância marcados pelos sentimentos mais diversos; da euforia das descobertas ao choque das frustrações, como em “Restos do carnaval” ou em “Cem anos de perdão”.
Felicidade Clandestina é uma das obras mais representativas do estilo de Clarice Lispector, tanto por seu caráter introspetivo e psicológico, quanto pela sensibilidade com que a autora trata as pequenas experiências humanas. Publicado em 1971, o livro reúne vinte e cinco contos e crónicas que, apesar de independentes entre si, formam um mosaico da alma humana, com as suas contradições, desejos e descobertas.
A escrita de Clarice transcende as fronteiras entre conto, crónica e ensaio, revelando uma autora que não se submete às convenções literárias. Em vez de narrativas lineares e centradas em ações externas, as suas histórias mergulham nos fluxos mentais e emocionais dos personagens. A ênfase está no instante revelador, a chamada epifania, momento em que a personagem experimenta uma súbita compreensão da realidade ou de si mesmo. Essa estratégia literária confere à obra um tom filosófico e existencial, aproximando a autora de correntes como o existencialismo e a psicanálise.
Ao longo da obra, Clarice demonstra um domínio raro da linguagem. A narrativa é fragmentada, poético, às vezes enigmática, mas profundamente humana. O leitor é convidado a participar ativamente da construção do sentido, não havendo respostas prontas, apenas caminhos possíveis. Essa abertura interpretativa faz com que cada leitura se torne única, dependente da própria sensibilidade de quem lê.
Além da análise psicológica e existencial, Felicidade Clandestina também revela um olhar atento às relações humanas, especialmente às femininas. As personagens, frequentemente mulheres, enfrentam dilemas ligados à identidade, à maternidade, ao amor e à solidão, num retrato subtil da condição feminina no século XX. Aconselho.

Barral, Nicolas (2025). O Desassossegado Senhor Pessoa. Lisboa: Levoir.

N.º de páginas: 144
Início da leitura: 22/10/2025
Fim da leitura: 27/10/2025

**SINOPSE**
"Esta obra foi uma das grandes sensações no mundo da Banda Desenhada em França em 2024 e Candidato aos prémios do festival de banda desenhada de Angoulême 2025, O Desassossegado Senhor Pessoa, é "um retrato comovente de Fernando Pessoa, um dos maiores escritores do século XX".

Simão Cerdeira, um jovem jornalista do Diário de Lisboa é indicado para escrever o obituário de Fernando Pessoa, porque corre o rumor, em Novembro de 1935, de que o poeta está doente e morrerá em breve. Mas Cerdeira nada sabe sobre o poeta lançando-se numa investigação, percorrendo o seu rasto, entrevistando as principais testemunhas da vida desta enigmática figura.

Ao mesmo tempo, Pessoa prepara a sua morte. Na altura Fernando Pessoa trabalhava nos textos do Livro do Desassossego, do heterónimo Bernardo Soares. Esta obra tem um posfácio e tradução de Ricardo Belo de Morais, escritor, investigador e especialista em Fernando Pessoa.

Dizem que Pessoa tinha um baú cheio de milhares de textos, uma espécie de caixa de correio onde todos esses escritores vinham regularmente deixar os seus manuscritos. Um baú cheio de pessoas que talvez só existam na imaginação do seu dono."
Fernando Pessoa é, sem dúvida, uma das figuras mais enigmáticas da literatura portuguesa. Sou uma fã incondicional da sua poesia e dos seus heterónimos, bem como de Pessoa ortónimo.
O Desassossegado Senhor Pessoa, de Nicolas Barral, é uma novela gráfica que nos conduz pelos últimos dias de vida do poeta, cruzando-os com a história de um jornalista que foi incumbido de escrever o seu obituário. É precisamente nesta premissa que reside grande parte do encanto da obra: o autor consegue transportar-nos para dentro do universo pessoano, permitindo-nos sentir que, ao fechar o livro, sintamos um Pessoa mais próximo, menos etéreo.
O final é particularmente comovente. Mostra-nos um homem esgotado, fragmentado entre as suas múltiplas vozes e personalidades, tentando dar sentido ao mundo através da criação (que se revoltam, a certa altura, com Pessoa, pois acham que têm voz própria e que ele abafa as suas vozes na literatura. É o retrato de uma existência marcada pelo peso do pensamento e por uma solidão que, em parte, foi escolhida, talvez como forma de se proteger da complexidade dos outros. 
O Desassossegado Senhor Pessoa é, assim, uma leitura belíssima e introspetiva, uma homenagem delicada e inteligente, que nos convida a olhar para Pessoa não como mito, mas como homem — frágil, contraditório e profundamente humano.

Lawhon, Ariel (2025). Rio de Gelo. Liaboa: Cultura Editora.

Tradução: Paula Antunes
N.º de páginas: 512
Início da leitura: 24/10/2025
Fim da leitura: 27/10/2025

**SINOPSE**
"Maine, 1789. Quando o rio Kennebec congela e devolve o corpo de um homem, Martha Ballard é chamada a examiná-lo. Parteira e curandeira respeitada, Martha conhece como ninguém os segredos que se escondem por detrás das portas fechadas de Hallowell. Regista-os com precisão no seu diário: nascimentos, mortes, crimes, escândalos.

Meses antes, anotara o testemunho de uma jovem que acusava dois homens influentes da cidade de violação. Agora, um deles aparece morto, enterrado no gelo. Quando um médico local desmente as suas conclusões e declara a morte como acidental, Martha recusa-se a aceitar o silêncio e decide investigar por conta própria.

Rio de Gelo dá voz a uma mulher determinada e corajosa, numa época em que as mulheres eram esperadas para escutar, não para falar.

Baseado na vida e no diário real de Martha Ballard, parteira do século XVIII, este é um mistério histórico envolvente sobre justiça, coragem e memória — e sobre como algumas histórias se recusam a desaparecer."
Rio de Gelo, de Ariel Lawhon, é um daqueles romances que nos conquistam logo nas primeiras páginas e não nos largam até ao fim. Inspirado em várias histórias reais, o livro entrelaça factos e ficção de forma magistral, criando uma narrativa intensa, emotiva e profundamente humana. A autora tem uma escrita envolvente, capaz de transportar o leitor para dentro da história, fazendo-nos sentir parte das vidas e dos dilemas das personagens.

Trata-se de um romance que combina de forma equilibrada elementos de crime, mistério e thriller, sem nunca perder a dimensão emocional que o torna tão marcante. Ao longo das páginas, são abordados temas difíceis e profundamente reais, como os partos em casa, a violação, os filhos nascidos dessas situações traumáticas, a busca por justiça, o amor e a importância da família. Tudo isto é feito com uma sensibilidade notável, sem recorrer ao sensacionalismo, mas antes com uma empatia que nos faz refletir sobre as várias formas de resistência e esperança humanas.

É, sem dúvida, uma leitura intensa e memorável, um excelente exemplo de como a ficção pode dar nova vida às histórias do passado, tornando-as universais e profundamente tocantes. Rio de Gelo é um livro que se sente tanto quanto se lê, e que permanecerá connosco muito depois de fecharmos a última página.

Velho, Susana Amaro (2025). As Últimas Linhas Destas Mãos. Lisboa: Casa das Letras

N.º de páginas: 256
Início da leitura: 20/10/2025
Fim da leitura: 23/10/2025

**SINOPSE**
Depois da morte da mãe, Teresa herda um caixote de cartas antigas, fotografias sem data e pequenos objetos de valor insignificante. Escritas ao longo de décadas por uma mulher que assina com o mesmo nome da mãe, Alice, mas que fala de amores clandestinos, lugares que a filha não reconhece, de despedidas que parecem dirigidas a alguém que não ela.

Nas entrelinhas dessas palavras, começa a desenhar-se uma história paralela à que lhe foi contada, à que viveu, àquela a que tentou a custo sobreviver: feita de omissões, de vidas vividas à margem do possível, uma narrativa subterrânea que emerge em frases soltas, por vezes, desconcertadas, que despem uma desconhecida. 

No regresso à casa da infância, Teresa procura reconstituir a figura da mãe: quem foi esta mulher antes de se deixar domesticar, antes de ceder o corpo e a linguagem ao papel de esposa e mãe?

Na ressonância das cartas que percorre, Teresa descobre o que acontece quando o amor não cabe na vida que se escolheu viver. 
Há livros que nos tocam de forma subtil, quase silenciosa, e há outros que nos agarram pela força das palavras, pela intensidade das emoções e pela delicadeza com que abordam temas universais. Esta obra de Susana Amaro Velho, pertence claramente a esta segunda categoria. Desde as primeiras páginas senti-me rendida à escrita da autora. Há nela um dom raro de contar histórias fortes num tom poético e cuidado, que nos envolve e nos faz ler devagar, saboreando cada frase.

O romance mergulha nas águas profundas do luto, do abandono e do amor impossível, temas que poderiam facilmente cair no dramatismo excessivo, mas que aqui são tratados com uma elegância contida, quase musical. O ritmo das palavras, a escolha das imagens e a sensibilidade da narrativa revelam uma escritora que conhece bem o poder da linguagem e o usa para nos aproximar da fragilidade humana.

Um dos aspetos que mais me encantou foi a estrutura narrativa. As diferentes personagens assumem, de forma alternada, a voz da narração, oferecendo-nos múltiplos pontos de vista sobre os mesmos acontecimentos. Essa alternância não só enriquece a história, como nos permite compreender melhor as motivações, os silêncios e as feridas de cada um. É um exercício de empatia que desafia o leitor a olhar para o mundo com mais profundidade e menos certezas.

As últimas linhas destas mãos é, acima de tudo, um livro sobre a persistência da memória e sobre a forma como o amor, mesmo quando impossível, continua a marcar presença nas nossas vidas, transformando-se em palavras, em gestos e, talvez, nas “últimas linhas” que nos restam escrever. Susana Amaro Velho confirma, com esta obra, a sua voz singular no panorama literário contemporâneo português: sensível, intensa e profundamente humana.

Baldini, Laura (2025). Um Sonho de Beleza. Lisboa: Alma dos Livros.
Tradução: Beatriz Cadete
N.º de páginas: 328
Início da leitura: 17/10/2025
Fim da leitura: 19/10/2025

**SINOPSE**
"A história de Estée Lauder, a mulher extraordinária que transformou o seu sonho numa marca mundial. Ela não seguiu as tendências. Criou-as.
«Com os perfumes é como no amor. Um pouco nunca é suficiente.» — Estée Lauder
Nova Iorque, 1928. A jovem Esty começa a misturar cremes artesanais no quintal do tio. Apaixonada por fragrâncias e determinada a criar algo único, desenvolve os seus próprios cremes. Estas primeiras criações, ainda embaladas em frascos de compota, são vendidas pela própria na praia, apenas com uma pequena mesa desdobrável e um sonho maior do que o mundo. As suas primeiras clientes ficam maravilhadas! É o início de um percurso notável.
Determinada a deixar a sua marca no mundo da cosmética, Esty assume o nome Estée, muda-se do bairro operário de Queens para o coração sofisticado de Manhattan, e luta por conquistar um lugar nos balcões do luxuoso armazém Saks na Quinta Avenida.
Com ideias revolucionárias para a época — como oferecer amostras grátis para conquistar clientes — e uma dedicação incansável, rapidamente se torna uma referência no universo da beleza.
Mas todo o sucesso tem um custo. As exigências da sua carreira ameaçam afastá-la do homem que ama."
Um Sonho de Beleza, de Laura Baldini, é uma biografia romanceada de Estée Lauder, a mulher que revolucionou o mundo da cosmética e construiu um império, quando o papel das mulheres ainda era rigidamente limitado ao espaço doméstico. O livro destaca-se pela forma como retrata a ambição, a coragem e a perseverança de Estée, mostrando uma mulher determinada a alcançar os seus objetivos profissionais num contexto em que tal ousadia era vista quase como uma afronta.
Ao longo da narrativa, acompanhamos não só a sua ascensão no mundo dos negócios, mas também os desafios da sua vida pessoal, marcada por escolhas pouco convencionais para a época. É particularmente interessante (e por vezes desconcertante) ver como o marido de Estée assume o papel de ficar em casa com o filho, enquanto ela se dedica inteiramente à carreira e ao crescimento da marca. Esta inversão dos papéis tradicionais é um dos aspetos mais fascinantes do livro, pois evidencia a visão à frente do seu tempo de Estée Lauder e, ao mesmo tempo, o quanto foi incompreendida por quem a rodeava.
Apesar de admirar a sua força e determinação, confesso que nem sempre apreciei a sua personalidade, sobretudo quando se deixa influenciar por comentários alheios, especialmente de clientes que a criticam por ter um marido “dependente” e “sem ambição”. Nestes momentos, a personagem parece perder um pouco da sua segurança e da coerência que a tornam inspiradora. Ainda assim, esta fragilidade também contribui para a tornar mais humana e real, lembrando-nos de que até as figuras mais fortes enfrentam dúvidas e pressões sociais.
A escrita de Laura Baldini é envolvente e fluida, conseguindo equilibrar o rigor biográfico com um tom intimista e emocional que prende o leitor. A autora conduz-nos com leveza pelos bastidores da criação de uma marca lendária, sem nunca perder de vista a mulher por detrás do sucesso - ambiciosa, imperfeita, visionária.

Dazai, Osamu (2023). Um Homem em Declínio. Lisboa: Editorial Presença.

Tradução: Manuel Alberto Vieira
Nº de páginas: 160
Início da leitura: 15/10/2025
Fim da leitura: 17/20/2025

**SINOPSE**
"«A minha vida foi marcada pela vergonha. Não consigo sequer imaginar como será viver a vida de um ser humano.»

Yozo vê-se como um verdadeiro fracasso. A sua vida - a que ele mesmo nos narra - quase pode parecer normal, mas a incapacidade que sente em perceber os outros seres humanos é absolutamente dilacerante.

Desde muito cedo, Yozo viu crescer esse fosso entre si e o resto do mundo. Na adolescência, tenta sobreviver tornando-se o palhaço da escola, mas a máscara que usa para camuflar a sua alienação cai quando a tentativa de suicídio, já na vida adulta, sai gorada.

Não dando espaço ao sentimentalismo e sem conceder ao drama o que permite à dor crua, Yozo regista, nestas páginas, a crueldade dos dias, mas, do mesmo modo, os raros momentos em que se sente ligado aos outros, em que a ternura representa um vislumbre de vida humana.

Com claros traços autobiográficos, Um Homem em Declínio é o derradeiro e mais importante romance de um dos grandes escritores japoneses do século XX, Osamu Dazai. Sobre ele, muitos escreveram tratar-se de um símbolo de uma geração, a que deixava a guerra para trás e via já os alvores de uma sociedade pós-moderna. É, sem sombra de dúvidas, um brutal e íntimo retrato da alienação individual."

Esta é uma obra profundamente introspetiva e angustiante, que mergulha na psicologia do protagonista, Yozo Oba. O livro segue a jornada de Yozo, um homem profundamente atormentado com a sua própria identidade e incapaz de se conectar verdadeiramente com os outros. Dazai constrói uma narrativa marcada por uma sensação de desconforto existencial, onde Yozo luta com a sua própria alienação e com o conceito de identidade, refletindo as suas falhas, os seus medos e os seus momentos de auto destruição.

A obra é marcada por uma escrita perturbadora, mas de grande profundidade emocional, na qual o protagonista reflete sobre as convenções sociais e sobre a sua incapacidade de se encaixar nelas. Através de suas anotações, vemos não apenas o declínio físico e psicológico de Yozo, mas também o desespero de uma pessoa que sente que não há sentido em suas ações ou na sua própria existência.

O estilo de Dazai, frequentemente descrito como desesperançado e melancólico, cria uma atmosfera tensa e densa, mas também profundamente humana. A forma como ele explora o sofrimento psicológico e a alienação é uma das forças do livro, tornando-o, quanto a mim, uma obra importante dentro da literatura japonesa.
É um livro ideal para quem aprecia histórias reflexivas que abordam a complexidade da mente humana e as dificuldades existenciais. Gostei muito e recomendo.

Sans Segarra, Manuel; Cebrián, Juan Carlos (2025). A Supranconsciência Existe, Vida Depois da Vida. Lisboa: Planeta de Livros.

N.º de páginas: 232
Início da leitura: 12/10/2025
Fim da leitura: 15/10/2025

**SINOPSE**
"O médico Manuel Sans Segarra, prestigiado cirurgião e pioneiro na investigação da Supraconsciência, em colaboração com o jornalista e empreendedor Juan Carlos Cebrián, explora as Experiências de Quase Morte (EQM) à luz de não só uma ótica científica, inspirada na neurociência e física quântica, como também de uma perspetiva espiritual.

Através de relatos reais, este livro revela uma nova compreensão sobre a consciência humana e a vida depois da morte, desafiando todas as conceções tradicionais de existência e criando um guia poderoso para superarmos os nossos medos e refletirmos sobre a nossa vida.

O livro definitivo sobre o fenómeno das Experiências de Quase Morte e o seu poder para transformar as nossas vidas."
A Supraconsciência Existe – Vida Depois da Vida, de Dr. Manuel Sans Segarra e Juan Carlos Cebrián, foi, para mim, uma leitura completamente fora da minha zona de conforto. O tema — a existência de uma consciência superior e a possibilidade de vida após a morte — é, por si só, desafiante, especialmente quando não nos movemos habitualmente neste tipo de reflexão entre a ciência, a espiritualidade e a filosofia.
Tendo em casa uma situação semelhante às descritas no livro, entre experiências-limite e a procura de sentido perante o fim da vida, aproximei-me destas páginas com curiosidade, mas também com alguma expectativa de encontrar respostas — ou, pelo menos, novas perspetivas. No entanto, talvez por ignorância minha ou, simplesmente, porque não há ainda nada de facto cientificamente provado, acabei por sentir esta leitura como algo distante, demasiado filosófica e, por momentos, até aborrecida.
Os autores esforçam-se por conciliar a linguagem médica e científica com uma dimensão espiritual que procura transcender o físico, mas o resultado, a meu ver, fica num território ambíguo. Fala-se muito sobre energia, consciência e eternidade, mas sem o suporte empírico que um leitor mais racional pode esperar — e, sem isso, a mensagem perde força.
Ainda assim, reconheço o mérito da tentativa. É um livro que pode tocar profundamente quem já tenha refletido sobre o tema, ou quem procure um olhar mais espiritual sobre a existência. Para mim, no entanto, ficou a sensação de não ter encontrado respostas — talvez porque, no fundo, essas respostas ainda não existem, ou pertencem a um plano onde a ciência e a fé raramente se encontram.

Branco, Francisco; Alves, Roberto Macedo e Sousa, Válter (2025). Camões (Re)visitado. Funchal: Sétima Dimensão.

N.º de páginas: 98
Início da leitura: 12/10/2025
Fim da leitura: 15/10/2025

**SINOPSE**
"Camões (Re)Visitado é uma obra que apresenta uma abordagem contemporânea da figura de Luís de Camões, visando torná-lo mais acessível e relevante para os leitores mais jovens e para todos os que desejam redescobrir a sua obra.

Esta banda desenhada, que combina literatura, artes visuais e pedagogia, explora as várias dimensões do poeta e da sua obra através de diferentes expressões artísticas, destacando a sua presença no imaginário português e a sua influência na cultura lusófona.

Camões (Re)Visitado é um convite a mergulhar na vida e na obra de Camões, oferecendo uma nova perspetiva sobre o poeta e o seu legado, e reforçando a sua importância na identidade cultural portuguesa."
Esta novela gráfica, concebida para celebrar o quinto centenário de Luís Vaz de Camões, parte de uma história atual em que um jovem, Martim, é interpelado pelo próprio poeta após uma apresentação desastrosa, em Lisboa. Este jovem, comparado a um perdigão que “perdeu a pena”, acaba por encontrar o espírito de Camões, que o vai interrogando ao longo da narrativa, desafiando-o e levando-o a crescer espiritualmente.
Ao longo desse diálogo entre épocas e consciências, Martim aprende o verdadeiro sentido de valores como a resiliência, a criatividade e o poder da obra que perdura no tempo. O encontro entre o jovem e o poeta transforma-se, assim, numa viagem interior de descoberta e inspiração, que ultrapassa a simples homenagem histórica.
Camões (Re)Visitado revela-se, deste modo, uma forma diferente e atual de celebrar o autor de Os Lusíadas: uma presença ousada, que mistura o clássico e o contemporâneo, e que poderá inspirar novas gerações a olhar o legado camoniano com um inovo "olhar". Há, é certo, algumas correções ortográficas de que o texto ainda carece, mas nada que não possa ser melhorado numa próxima edição.

Montes, Raphael (2025). Suicidas. Lisboa: Cultura Editora.

N.º de páginas: 384
Início da leitura: 10/10/2025
Fim da leitura: 13/10/2025

**SINOPSE**
"Ainda antes de o mundo sonhar com o terrível jogo da baleia azul, que leva jovens a tirar a própria vida, ou que a série de televisão Thirteen Reasons Why se tornasse conhecida, Raphael Montes, então com 22 anos, já tratava do tema do suicídio entre jovens, com a ousadia que virou a sua marca registada.

Neste seu primeiro livro, que a Cultura edita depois dos sucessos Jantar Secreto e Uma Família Feliz, conhecemos a história de Alê e seus companheiros, jovens da elite do Rio de Janeiro encontrados mortos na quinta de um deles em condições que indiciam que os nove amigos haviam participado num jogo de roleta-russa.

O que terá levado aqueles adolescentes, aparentemente felizes e privilegiados, a tirar a própria vida?

A inspetora Diana Guimarães terá de juntar as peças de um puzzle sangrento e de convocar as mães dos suicidas para compreender o que aconteceu.

Do autor de Beleza Fatal e de Bom Dia, Verônica, séries da Max e da Netflix."
Como acontece com os restantes livros de Raphael Montes que já li, Suicidas confirma, mais uma vez, a capacidade do autor de nos surpreender e de nos prender irremediavelmente à narrativa. Montes tem o dom de explorar o lado mais sombrio da mente humana e de o fazer com uma crueza desarmante, sem filtros nem complacência.
Não é, de todo, uma leitura fácil. É um livro que exige estômago, que desafia o leitor a enfrentar a violência e a degradação moral que se escondem sob a superfície de uma juventude aparentemente banal. O autor constrói um thriller intenso, sangrento, quase claustrofóbico, que nos obriga a encarar o que há de mais desprezível - e, simultaneamente, de mais real - no ser humano.
O enredo, centrado num pacto macabro entre jovens que decidem pôr fim às suas vidas, não é apenas um exercício de horror psicológico. É também um espelho desconfortável da nossa sociedade contemporânea, marcada pelo vazio existencial, pela pressão do sucesso e pela incapacidade de lidar com a dor e o fracasso. Suicidas é, assim, uma chamada de atenção, que nos recorda o quão frágil pode ser a linha entre o desespero e a autodestruição.
Raphael Montes escreve com uma precisão quase cirúrgica: cada detalhe, cada diálogo, cada descrição contribui para adensar a atmosfera de tensão que domina o livro do início ao fim. Mesmo quando o enredo se torna quase insuportável, é impossível largar a leitura - somos arrastados pela curiosidade, pelo medo, pela necessidade de compreender o porquê de tudo aquilo.

Vieira, M.L. (2025). Danificada. Lisboa: Iguana.

N.º de páginas: 88
Início da leitura: 09/10/2025
Fim da leitura: 10/10/2025

**SINOPSE**
"Numa fábrica do futuro, máquinas e meios de transporte são montados por um batalhão de clones. Todas mulheres, todas iguais, cada uma com um número. Elas não têm personalidade, nem ansiedades, nem se interrogam sobre a vida. Até que um dia a 2518 começa a sonhar com uma vida diferente. Sonha com a liberdade e um propósito até que... tudo começa a correr mal.

Nesta estreia impressionante, M.L. Vieira pega na ficção científica e na banda desenhada, e dá-lhe uma prosa poética e atual."
Gostei muito desta novela gráfica. Danificada, de M. L. Vieira, surpreendeu-me profundamente pela forma como conjuga a crueldade e a poesia num mesmo traço narrativo. A história decorre num mundo distópico, onde nada é deixado ao acaso: as clones existem apenas para cumprir uma função, produzir bicicletas, e são privadas de qualquer liberdade, pensamento próprio ou emoção. No entanto, é precisamente nesse cenário mecanizado e opressivo que nasce a centelha da rebeldia. A 2518, uma entre tantas outras cópias, começa a sonhar com algo que nunca conheceu: a liberdade, o toque do vento, a possibilidade de escolher o próprio destino.
O contraste entre a frieza industrial do mundo retratado e a delicadeza dos sonhos da protagonista é o que torna Danificada tão poderosa. A narrativa visual reforça essa tensão: há uma beleza melancólica nas ilustrações. M. L. Vieira consegue criar um universo onde o silêncio fala tanto quanto as palavras - e onde a esperança, por mais frágil que pareça, ganha forma e movimento.
A pergunta que ecoa até ao final - conseguirá a 2518 fugir? - é mais do que um mero suspense narrativo. É uma reflexão sobre o que significa ser livre, sobre o preço da individualidade num mundo que prefere cópias à criação. Danificada é, assim, uma leitura que emociona e inquieta, um espelho das nossas próprias lutas contra as formas subtis de controlo e conformismo. Cruel e poética, sim - mas, acima de tudo, profundamente humana.

Mãe, Valter Hugo (2024). Deus na Escuridão. Porto: Porto Editora.

N.º de páginas: 288
Início da leitura: 07/10/2025
Fim da leitura: 09/10/2025

**SINOPSE**
"«Deus é exactamente como as mães. Liberta Seus filhos e haverá de buscá-los eternamente. Passará todo o tempo de coração pequeno à espera, espiando todos os sinais que Lhe anunciem a presença, o regresso dos filhos.»
Este livro explora a ideia de que amar é sempre um sentimento que se exerce na escuridão. Uma aposta sem garantia que se pode tornar absoluta. A dúvida está em saber se os irmãos podem amar como as mães que, por sua vez, amam como Deus.
Passada na ilha da Madeira, esta é a história de dois irmãos e da necessidade de cuidar de alguém. Delicado e profundo, Deus Na Escuridão é um manifesto de lealdade e resiliência."
Em Deus na Escuridão, Valter Hugo Mãe regressa à escrita mais íntima e espiritual, aquela que nos confronta com a fragilidade humana e a força silenciosa do amor. A frase que abre o livro - «Deus é exactamente como as mães. Liberta Seus filhos e haverá de buscá-los eternamente.» -  serve como mote para toda a narrativa. É um retrato terno e doloroso da relação entre o divino, a maternidade e a capacidade humana de amar, mesmo quando o amor é uma forma de escuridão - um espaço onde nada é garantido, mas tudo é sentido com intensidade absoluta.
A história, passada na ilha da Madeira, ecoa a solidão e a beleza agreste do lugar. A paisagem insular torna-se quase uma personagem: isolada, mas plena de uma espiritualidade que acolhe e desafia. É neste cenário que dois irmãos enfrentam o peso da existência e a necessidade de cuidar - um irmão mais velho, saudável e um irmão mais novo, que nasceu "sem as origens...vinha mordido entre as pernas como se algum predador o tivesse buscado na barriga de nossa mãe". O irmão mais velho, narrador desta história, assume o papel de proteger o irmão de tudo e de todos - um cuidador sensato e terno. O livro é, acima de tudo, uma reflexão sobre a responsabilidade que nasce do amor: a ideia de que amar é, inevitavelmente, um gesto de entrega e de fé, algo que se faz sem luz, sem certezas, mas com total devoção.
Valter Hugo Mãe escreve com uma delicadeza rara, onde a ternura convive com a dor, e onde o cuidado se revela como o mais humano dos atos. Deus na Escuridão é um manifesto de lealdade e resiliência, uma meditação poética sobre o amor que resiste, mesmo quando tudo parece perdido. É um livro que pede silêncio e atenção, porque cada frase carrega um peso espiritual - o de quem sabe que amar é, talvez, o mais divino dos gestos humanos.

Destaco, de entre muitas, uma passagem, pela beleza e pela verdade que encerra e em que me revi.
"Deus é exactamente como são as mães, que criam e depois vão ficando para trás, à distância, numa distância que parece significar que não são mais precisas, e Ele, como elas, só sabe amar acima de qualquer defeito e qualquer falha, com cada vez maior saudade, mas não sabe o caminho, não sabe por onde os filhos foram, só pode suplicar que não se percam e não se percam da vontade de voltar."

Stevenson, Robert Louis. A Ilha do Tesouro. Lisboa: Editora Guerra e Paz, 2016.

Tradução: Rui Brito Santana
N.º de páginas: 288 
Início da leitura: 05/10/2025
Fim da leitura: 07/10/2025

**SINOPSE**
"História de aventura e sonhos, com personagens inesquecíveis, de Billy Bones, o homem da cicatriz, ao heróico menino e moço Jim Hawkins, ao arquetípico pirata da perna de pau que é Long John Silver, ou ao terrível e malvado capitão Flint. Todos se movem por causa de um tesouro enterrado. Que talvez um mapa ajude a localizar."


Há livros que nos acompanham desde a infância, histórias que ficam gravadas na memória como aventuras inesquecíveis. A Ilha do Tesouro, de Robert Louis Stevenson, é um desses clássicos que atravessam gerações, reinventando-se em adaptações, versões infantis e novas edições. A edição da Guerra e Paz despertou-me a curiosidade de revisitar esta narrativa, agora com outros olhos - os de um leitor adulto que guarda ainda as recordações das leituras da infância.

Lembrava-me da emoção das primeiras páginas, do fascínio pelo mapa do tesouro, dos piratas e da promessa de aventura em mares distantes. Ao regressar à obra original, encontrei um texto mais denso, mais trabalhado, que confirma o talento de Stevenson e a razão pela qual o livro é um marco da literatura de aventura. No entanto, ao mesmo tempo, percebi que parte da magia se tinha dissipado. Talvez porque, na infância, a imaginação tem um poder que o tempo suaviza; talvez porque, ao crescer, lemos de forma diferente - mais crítica, menos entregue.

Ainda assim, valeu a pena esta leitura. A Ilha do Tesouro mantém a força de um grande clássico, uma história intemporal sobre coragem, ganância, amizade e descoberta. Não é apenas um livro de aventuras, mas também uma viagem interior, tanto para quem o lê pela primeira vez como para quem regressa a ele anos depois. E, mesmo que a magia não seja exatamente a mesma, há algo de reconfortante em perceber que ela ainda lá está, à espera de ser redescoberta - talvez por outros olhos, mais jovens, prontos para se deixarem encantar novamente.

Moriarty, Laura (2014). As Estrelas Brilham na Cidade. Barcarena: Editorial Presença.

Tradução: Marta Mendonça
N.º de páginas: 368
Início da leitura: 01/10/2025
Fim da leitura: 04/10/2025

**SINOPSE**
"Em 1922, Louise Brooks tem apenas 15 anos e vive em Wichita, no Kansas, quando parte para Nova Iorque a fim de frequentar um curso de dança. Com ela vai também Cora, uma mulher mais velha e já casada, para lhe servir de acompanhante. Contudo, apesar de Louise Brooks se ter tornado mais tarde um dos grandes ícones do cinema mudo, é a vida de Cora que Laura Moriarty recria neste romance. Cora Carlisle é uma sufragista bastante convencional, que oculta os seus segredos e tem motivos próprios relacionados com as suas origens para aceitar fazer aquela viagem. Por outro lado, a diferença de idades e de atitudes entre as duas mulheres permite à autora tirar partido do que distingue as duas gerações explorando engenhosamente as múltiplas facetas das mudanças que vão ocorrendo na sociedade.
As Estrelas Brilham na Cidade é uma narrativa fascinante e muito bem documentada sobre a história e a mudança de mentalidades durante o século XX."
As Estrelas Brilham na Cidade, de Laura Moriarty, é um romance de ficção histórica, que nos transporta para o início do século XX, acompanhando a vida de duas mulheres muito diferentes, que acabam por se cruzar de forma transformadora. A história começa em 1922, quando Cora, uma mulher de 36 anos, casada e de valores tradicionais, aceita acompanhar a jovem Louise Brooks a Nova Iorque. Louise é uma adolescente ambiciosa, rebelde e cheia de energia, prestes a tornar-se numa das grandes estrelas do cinema mudo - um ícone de uma geração que viria a desafiar convenções e redefinir o papel da mulher na sociedade.

As cinco semanas que passam juntas em Nova Iorque mudam Cora profundamente. Habituada a uma vida marcada pelas convenções e pelos “bons costumes”, Cora é confrontada com um mundo vibrante, boémio e moralmente ambíguo. No meio da efervescência dos anos 20 - entre o jazz, a Lei Seca e os novos costumes - ela começa a perceber que a moral não é uma linha reta, mas um território cheio de nuances. Aos poucos, torna-se mais compreensiva, mais tolerante e menos rígida nos seus julgamentos. A viagem, que inicialmente parecia um simples favor, revela-se uma jornada de autodescoberta e de crescimento interior.

Narrado do ponto de vista de Cora, o livro oferece um olhar íntimo sobre o contraste entre a América conservadora do Centro-Oeste e o espírito livre de Nova Iorque dos anos 20. Louise Brooks, com a sua personalidade intensa e a sua história marcada por traumas, é o catalisador dessa transformação - uma jovem que, apesar das suas falhas, encarna a modernidade e a busca pela autenticidade.

Laura Moriarty escreve com delicadeza e profundidade, captando as tensões sociais e morais de uma época em mudança. A narrativa estende-se do início dos anos 1900 até à Guerra do Vietname, mostrando como o tempo molda as pessoas e as suas convicções. É uma leitura rápida, envolvente e cheia de humanidade - um retrato sensível sobre a amizade, a liberdade e o poder de nos reinventarmos.

Ao longo da narrativa, vamos conhecendo várias gerações desta família tão pouco convencional, uma vez que a protagonista consegue a proeza - rara para a sua época - de chegar a uma idade avançada, ultrapassando os noventa anos. Essa longevidade permite a Cora assistir às profundas transformações do século XX, desde as mudanças nos costumes até às convulsões sociais e políticas que marcaram a América. Através dos seus olhos, percebemos como o mundo rural e conservador do início do século se foi diluindo num novo modo de vida, mais urbano, mais livre, mas também mais incerto.

Aconselho vivamente a leitura deste livro!
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Sobre mim

Professora de português e professora bibliotecária, apaixonada pela leitura e pela escrita. Preza a família, a amizade, a sinceridade e a paz. Ama a natureza e aprecia as pequenas belezas com que ela nos presenteia todos os dias.

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