Uma Questão de Conveniência, Sayaka Muraka

Muraka, Sayaka (2019). Uma Questão de Conveniência. Alfragide: Publicações Dom Quixote.

Tradução: Rita Kohl
N.º de páginas: 168
Início da leitura: 10/07/2025
Fim da leitura: 15/07/2025

**SINOPSE**
"Keiko foi sempre estranha - e os pais perguntam-se onde encaixará ela no mundo real. Por isso, quando a rapariga resolve ir trabalhar para uma loja de conveniência, a notícia é recebida com entusiasmo, até porque na loja ela encontra um mundo bastante previsível, que domina com a ajuda de um manual e copiando os colegas até na forma de falar.

Mas aos 36 anos é ainda na mesma loja de conveniência que trabalha, e além disso nunca teve um namorado, frustrando as expectativas da sociedade… Embora Keiko não se importe com isso, sabe que a família e os amigos estão mais ou menos desesperados. Um dia, porém, é contratado para a loja um rapaz com o qual Keiko tem algumas afinidades. Não será então aconselhável para ambos um relacionamento?

Sayaka Murata, uma das vozes mais originais e talentosas da ficção contemporânea japonesa, capta brilhantemente a atmosfera de uma loja de conveniência e satiriza as obsessões que regem a sociedade contemporânea e a pressão exercida sobre as mulheres no sentido de cumprirem expectativas alheias, com o pretexto de terem uma vida normal.

Uma Questão de Conveniência, que venceu o prémio Akutagawa e foi traduzido em mais de vinte países, é o retrato de uma heroína deliciosa que promete ser tão memorável como Amélie Poulain."

Sayaka Murata oferece-nos, em Uma Questão de Conveniência, um retrato incomum e provocador da sociedade japonesa contemporânea, visto através dos olhos de uma protagonista que recusa seguir os padrões sociais estabelecidos. Este breve romance, apesar da sua aparente simplicidade, revela-se profundamente crítico e inquietante, levantando questões sobre identidade, normalidade e conformismo social.

A protagonista, Keiko Furukura, é uma mulher de 36 anos que trabalha há dezoito anos numa konbini (loja de conveniência). A escolha deste ambiente como palco central da narrativa não é casual: a loja é uma metáfora do funcionamento padronizado da sociedade japonesa — rotineiro, impessoal, mas funcional. A monotonia inicial da narrativa reflete deliberadamente a rotina obsessiva de Keiko, cujo mundo está meticulosamente estruturado em torno das regras e ritmos da loja. Esta secção do livro pode parecer estagnada a nós, leitores ocidentais, pouco habituados à valorização da repetição e da contenção emocional que caracterizam certos aspetos da cultura japonesa.

Contudo, o verdadeiro impacto da obra emerge quando Shiraha, um ex-colega socialmente marginalizado, entra em cena. A decisão de Keiko de o acolher em sua casa marca uma rutura na aparente estagnação da narrativa. Não por uma súbita transformação da protagonista, mas porque esta mudança revela com clareza a hipocrisia e a violência simbólica das expetativas sociais. A relação entre Keiko e Shiraha, longe de ser romântica ou mesmo amistosa, é uma aliança estratégica que ironiza as pressões exercidas sobre o indivíduo para se “normalizar” — casar, ter um emprego “aceitável”, e conformar-se com o que a sociedade considera sucesso ou maturidade.

A partir deste ponto, o livro ganha em intensidade e complexidade. O leitor passa a perceber que o verdadeiro conflito não é entre Keiko e o mundo exterior, mas entre a sua autenticidade e a necessidade de parecer “funcional” aos olhos dos outros. A prosa contida de Murata, quase minimalista, reforça esse contraste entre o absurdo social e a lógica interna da personagem, que, embora vista como “anormal”, vive em coerência com os seus próprios valores.

No final, Murata não oferece uma solução ou redenção tradicional. Em vez disso, reafirma a singularidade da protagonista e desafia-nos a reconsiderar o que significa “viver bem”. A aparente simplicidade da história mascara uma crítica feroz ao conformismo e à opressão das normas sociais, que se fazem sentir tanto no Japão como em muitas outras culturas.

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