Portela, Patrícia (2021). Hífen. Lisboa: Editorial Caminho.
Nº de páginas:
280
Início da
leitura: 09/09/2022
Fim da leitura:
10/09/2022
**SINOPSE**
«Flandia,
o avesso desalinhavado de uma possibilidade hifanada. A discussão sobre o sexo
dos anjos enquanto os portões cedem aos cavaleiros do Algoritmo.»
Hífen. um texto que, sendo de uma grande diversidade, tem do princípio até
ao fim uma grande unidade e uma grande coerência, por um lado, e uma grande
força. Quer quando se fala do amor de uma mãe por uma filha, e aqui chega-se a
sentir um estrangulamento na garganta, quer quando Ofélia se dirige ao marido
morto, e aqui sentimo-nos identificados com aquele sentimento de saudade, quer
quando se evoca a luta por um mundo melhor, quer quando se grita contra a
injustiça e contra o absurdo de um mundo onde nos sentimos muito bem desde que
abdiquemos do essencial, isto é, do sal da vida. E já no fim, quando a
resignação e o suicídio se confrontam como os dois destinos possíveis, a
solução encontrada me parece a melhor: mesmo que não lhe encontremos um
sentido, a vida é sempre a melhor solução.
Este
não é um livro comum. Intercala pensamentos, crítica, acontecimentos, em que
tudo se interliga numa distopia.
A
ação desenrola-se na Flândia, um lugar inventado pela autora a partir de uma
reflexão sobre o pudim flan, uma metáfora extraordinária de um preparado que
nos facilita a vida a tal ponto, que já não se distingue um pudim de ovos de um
pudim flan. É precisamente isso que acontece com o mundo, constantemente mais
facilitador, mais “evoluído”, mas em que tudo perde a cor e o sabor e o saber.
De
uma forma literária, com uma linguagem simples,mas muito bem trabalhada,
Patrícia Portela leva-nos até este novo lugar pela voz de uma mãe de uma das
muitas crianças vítimas da “doença do sono”, narração essa que acaba por ser
assumida por uma enfermeira das enfermeiras androides, neste lugar tão
tecnologicamente evoluído e, ao mesmo tempo, já tão pouco humano.
É
pela voz da mãe, dos desabafos que vai tendo com a filha enquanto dorme, enquanto
chora com dores, enquanto se debate com “batalhas noturnas”, que vamos
conhecendo a evolução da doença, a angústia crescente que se apodera desta mãe,
sempre receosa de que a filha a abandone no sono, já que “É no sono que nos
abandonamos ao cuidado dos outros, deixando o frágil coração decidir se
continua a bater amanhã”. É nestas horas que esta mãe se recorda do passado, desde
o nascimento da filha, das promessas que lhe fez e nunca cumpriu. E verdade
seja dita, passamos mesmo a vida a dizer “vamos lá este ano, ainda lá vamos
este ano”, sem que, de facto, façamos por ir. É aqui que desabafa sobre as
preocupações que sempre partilhou com a filha sobre os problemas ambientais,
sociais, financeiros, tecnológicos e políticos e que, neste momento, de nada
valem, de nada servem.
Esta
Flândia criada pelo próprio homem é a mesma que o trai, porque “Alimentámos um
monstro”.
E
mais não digo. Apenas que gostei muito deste livro e recomendo a sua leitura.
Uma leitura atenta a todos os sentidos que se escondem por detrás das palavras
para lhes conferir vida própria.
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