Muraka, Sayaka (2019). Uma Questão de Conveniência. Alfragide: Publicações Dom Quixote.
Sayaka Murata oferece-nos, em Uma
Questão de Conveniência, um retrato incomum e provocador da sociedade
japonesa contemporânea, visto através dos olhos de uma protagonista que recusa
seguir os padrões sociais estabelecidos. Este breve romance, apesar da sua
aparente simplicidade, revela-se profundamente crítico e inquietante,
levantando questões sobre identidade, normalidade e conformismo social.
A protagonista, Keiko Furukura,
é uma mulher de 36 anos que trabalha há dezoito anos numa konbini (loja de
conveniência). A escolha deste ambiente como palco central da narrativa não é
casual: a loja é uma metáfora do funcionamento padronizado da sociedade
japonesa — rotineiro, impessoal, mas funcional. A monotonia inicial da
narrativa reflete deliberadamente a rotina obsessiva de Keiko, cujo mundo está
meticulosamente estruturado em torno das regras e ritmos da loja. Esta secção
do livro pode parecer estagnada a nós, leitores ocidentais, pouco habituados à
valorização da repetição e da contenção emocional que caracterizam certos
aspetos da cultura japonesa.
Contudo, o verdadeiro impacto
da obra emerge quando Shiraha, um ex-colega socialmente marginalizado, entra em
cena. A decisão de Keiko de o acolher em sua casa marca uma rutura na aparente
estagnação da narrativa. Não por uma súbita transformação da protagonista, mas
porque esta mudança revela com clareza a hipocrisia e a violência simbólica das
expetativas sociais. A relação entre Keiko e Shiraha, longe de ser romântica ou
mesmo amistosa, é uma aliança estratégica que ironiza as pressões exercidas
sobre o indivíduo para se “normalizar” — casar, ter um emprego “aceitável”, e
conformar-se com o que a sociedade considera sucesso ou maturidade.
A partir deste ponto, o livro
ganha em intensidade e complexidade. O leitor passa a perceber que o verdadeiro
conflito não é entre Keiko e o mundo exterior, mas entre a sua autenticidade e
a necessidade de parecer “funcional” aos olhos dos outros. A prosa contida de
Murata, quase minimalista, reforça esse contraste entre o absurdo social e a
lógica interna da personagem, que, embora vista como “anormal”, vive em
coerência com os seus próprios valores.
No final, Murata não oferece uma solução ou redenção tradicional. Em vez disso, reafirma a singularidade da protagonista e desafia-nos a reconsiderar o que significa “viver bem”. A aparente simplicidade da história mascara uma crítica feroz ao conformismo e à opressão das normas sociais, que se fazem sentir tanto no Japão como em muitas outras culturas.