Histórias Soltas Presas Dentro de Mim

Jaeggy, Fleur (2025). O Medo do Céu. Lisboa: Alfaguara. 

Tradução: Ana Cláudia Santos
N.º de páginas: 128
Início e fim da leitura : 29/08/2025

**SINOPSE**
Estas são histórias trespassadas pela morte, ensombradas pela vingança do céu, desenhadas com clarividente onirismo.

Há uma mãe que detesta a filha e lhe nega um destino promissor; uma criada vinda de uma aldeola italiana com um objeto de devoção; duas mulheres que se conhecem no jardim zoológico e se juntam, honrando uma promessa; a assombração de um cão; gémeos órfãos que tomam posse de uma casa em ruínas e se dedicam a enfeitar caixões.

Há flores murchas; ares lacustres estagnados; instituições governamentais para velhos, ou incapacitados; objetos de culto profanados e vingativos; pais e filhos que se punem; a vaidade na velhice. As personagens destes contos temem o céu e agradecem-lhe, já que apenas o céu conhece as profundezas dos seus desejos.

Fleur Jaeggy volta a afinar aqui a tessitura única — trama, linguagem, imaginação — que transforma cada um dos seus livros em peças cintilantes de inquietação humana e literária."
É impossível não reconhecer a singularidade da escrita breve, fragmentada e de uma clareza cortante, mas ao mesmo tempo impregnada de uma estranheza que incomoda, de Jaeggy.

O livro apresenta um conjunto de narrativas onde a infância, a solidão e a morte se insinuam de forma quase obsessiva. São histórias povoadas por personagens que se movem em ambientes fechados, muitas vezes claustrofóbicos, onde a ternura é sempre negada ou adiada. O título — O Medo do Céu — sugere essa tensão permanente entre o desejo de transcendência e o peso de uma realidade fria, implacável.

A economia verbal obriga-nos a abrandar, a regressar a frases que, de tão nuas, se tornam quase oraculares. Ao contrário de narrativas que procuram desenvolver personagens e enredos, Jaeggy prefere oferecer lampejos, fragmentos que funcionam como visões: incompletas, mas poderosas. Essa recusa de explicação pode ser frustrante para alguns leitores, mas é também aquilo que confere à sua escrita uma força hipnótica.

O Medo do Céu não é literatura de conforto; é uma experiência de estranheza e de silêncio, feita de sombras e de fulgores breves. Ao fecharmos o livro, ficamos com a sensação de que estivemos diante de uma autora que escreve contra a fluidez, contra a pressa, e que, nesse gesto, consegue tocar num território mais profundo: o da inquietação essencial que nos acompanha.

Jaeggy, Fleur (2024). Viagem no Proleterka. Lisboa: Alfaguara.

Tradução: Ana Cláudia Santos
N.º de páginas: 120
Início da leitura: 29/08/2025
Fim da leitura: 29/08/2025

**SINOPSE**
"«As crianças desinteressam-se dos pais quando são abandonadas. […] Com determinação, sem tristeza. Tornam-se alheias. Por vezes, hostis. Já não são elas os seres abandonados, mas são elas que batem mentalmente em retirada. E vão-se embora. Em direção a um mundo sombrio, fantástico e miserável. E, no entanto, por vezes exibem felicidade.»

Esta é a história de uma viagem que cruza os mares da Grécia, ou pelo menos da recordação dessa viagem, filtrada pelo tempo. Johannes e a filha conhecem-se mal e mantêm uma relação distante. Reencontram-se no Proleterka, e procuram aí remediar um hiato sem remédio, recompor uma história de família, alimentar uma ideia de amor. Sobre eles, paira contudo a sombra de episódios passados, fragmentos espectrais que não chegam a diluir-se. É então que esta travessia se transforma numa outra: somos levados, pela mão da protagonista, à descoberta do prazer e do desejo, sem o filtro do interdito, sem o limite da convenção.

Viagem no Proleterka — tal como Felizes anos de castigo — mergulha no núcleo da inquietação, tome esta a forma de uma mãe gélida, ou de um pai desconhecido, ou de um marinheiro impetuoso. Da escrita fulgurante de Fleur Jaeggy, ninguém sai incólume."
Viagem no Proleterka, de Fleur Jaeggy, é um daqueles livros curtos que, apesar da brevidade, constituem uma boa experiência de leitura. A autora escreve com uma frieza lapidar, quase cirúrgica. Nada sobra, nada é gratuito. O resultado é um texto austero, mas de uma intensidade rara.

A narrativa acompanha a viagem de uma jovem com o pai a bordo do navio Proleterka, e é nesse espaço suspenso que se encenam tanto a descoberta da sexualidade como o afastamento afetivo entre pai e filha. O que poderia ser uma história de iniciação é, nas mãos de Jaeggy, um retrato sombrio, em que a proximidade nunca gera intimidade e o desejo nunca chega a ser reconfortante. Há uma atmosfera de desamparo constante, como se a protagonista se movesse num mundo onde a ternura fosse impossível.

O estilo de Jaeggy é talvez o que mais divide leitores: a sua escrita é seca, distante, quase impessoal, recusando o calor narrativo a que tantos romances nos habituaram. Mas é precisamente nessa contenção que reside a sua força. As imagens surgem rápidas, cortantes, e o silêncio entre as palavras diz tanto quanto o que está escrito.

Não é uma leitura que procure agradar. É, antes, uma experiência estética exigente, que pede atenção ao ritmo e aceitação da dureza. Embarquem nesta viagem!

Erpenbeck, Jenny (2024). Kairos. Lisboa: Relógio D'Água.


Tradução: António Sousa Ribeiro
N.º de páginas: 336
Início da leitura: 27/08/2025
Fim da leitura: 28/08/2025

**SINOPSE**

"Berlim. 11 de Julho de 1986. Encontram-se por acaso num autocarro. Ela é uma jovem estudante. Ele é mais velho e casado. Nasce uma atracção súbita e intensa, alimentada por uma paixão partilhada pela música e pela arte e intensificada pelo secretismo que precisam de manter.
Mas, quando ela se afasta por uma única noite, ele não lhe consegue perdoar. Uma fissura surge entre os dois, abrindo espaço para a crueldade, a punição e o exercício do poder.
Entretanto, o mundo em redor está a mudar. À medida que a RDA começa a ruir, também as velhas certezas e lealdades se desfazem, anunciando uma nova era cujas conquistas trazem consigo uma perda profunda.
Um relato íntimo e devastador do caminho de dois amantes pelos escombros de uma relação, num dos períodos mais turbulentos da história europeia."
O romance acompanha a relação entre uma jovem estudante e um homem mais velho, uma ligação que oscila entre a paixão avassaladora e a sombra da manipulação, sempre em paralelo com a lenta derrocada da República Democrática Alemã. Erpenbeck procura fundir o íntimo e o político, mostrar como as estruturas de poder que moldam um país também contaminam os afetos. A intenção é forte e ambiciosa, mas a execução nem sempre cativa. A prosa é minuciosa, por vezes quase clínica, e essa atenção ao detalhe, que podia ser uma virtude, acaba por saturar: capítulos que se arrastam, diálogos que parecem repetir-se, uma cadência que exige do leitor mais paciência do que recompensa.

Há momentos de grande lucidez — quando a autora expõe a fragilidade da memória, ou quando deixa entrever como o amor pode degenerar em prisão — mas esses instantes surgem dispersos, perdidos num tecido narrativo que, a certa altura, se torna cansativo. Talvez seja essa a razão do incómodo: Kairos tem todos os elementos de uma obra importante, mas a sua densidade aproxima-se mais do exercício intelectual do que da experiência viva da leitura.

 Kawabata, Yasunari (2024). O Arco-Íris. Lisboa: Publicações Dom Quixote.

Tradução:Francisco Agarez
N.º de páginas: 208
Início da leitura: 24/08/2025
Fim da leitura: 27/08/2025

**SINOPSE**
"Poucos anos depois de terminada a Segunda Guerra Mundial, e com o Japão ainda abalado pelos seus efeitos, duas irmãs - filhas do mesmo pai mas de mães diferentes - esforçam-se por compreender o novo mundo em que caminham para a idade adulta. Asako, a mais nova, vive obcecada pelo propósito de encontrar uma terceira irmã, ao mesmo tempo que experimenta o amor pela primeira vez.

Enquanto isto, Momoko, filha primogénita do seu pai - assombrada pela perda do namorado kamikaze e pelos últimos dias tormentosos que viveram juntos -, procura refúgio numa série de romances doentios e ambas se sentem incapazes de escapar ao legado das suas falecidas mães.

Romance sensível e profundo sobre os persistentes traumas da guerra, os indestrutíveis laços familiares e a inelutabilidade do passado, O Arco-Íris é uma obra lancinante e melancólica de um dos maiores escritores japoneses."
Há livros que não se deixam ler à pressa, e O Arco-Íris de Yasunari Kawabata é precisamente um desses. A narrativa move-se como a luz que se reflete na água: subtil, demorada, muitas vezes indecifrável à primeira vista, mas carregada de uma beleza que só se revela a quem aceita o compasso lento da contemplação.

Kawabata, conhecido pelo seu estilo delicado e profundamente introspetivo, constrói aqui uma história que não procura o enredo imediato ou a catarse fácil. Antes, convida o leitor a entrar num espaço onde as personagens vivem entre silêncios, memórias e pequenas epifanias quotidianas. Há uma cadência quase musical na forma como descreve os gestos, os lugares, os olhares — como se cada detalhe fosse um fragmento de vida suspenso no tempo.

O arco-íris do título funciona menos como metáfora óbvia e mais como uma presença difusa: algo que surge e desaparece, que não se pode reter. Do mesmo modo, a própria narrativa escapa à ânsia de linearidade; é feita de imagens que brilham e logo se dissipam, obrigando-nos a ler devagar, a regressar a passagens, a aceitar que a plenitude está no intervalo entre as palavras. É essa mesma recusa de velocidade que torna o romance profundo: Kawabata não descreve apenas acontecimentos, mas a forma como eles ressoam no íntimo das personagens.

Longe de ser uma leitura “fácil” ou de consumo imediato, O Arco-Íris exige entrega, como quem contempla um jardim em silêncio até reparar que cada folha, cada sombra, guarda uma história. 

Apesar de reconhecer estas qualidades e de apreciar muito os livros de Kawabata, reconheço que este me custou a ler. Não é, definitivamente um livro para ler no verão, entre mergulhos. Será, talvez, ideal para nos acompanhar em dias de outono ou inverno, entre um chá ou café, com uma manta, no sofá. Assim, achei a história um pouco monótona e repetitiva.

Kincaid, Jamaica (2025). Lucy. Lisboa: Alfaguara.

Tradução: Alda Rodrigues
N.º de páginas: 184
Início da leitura: 23/08/2025
Fim da leitura: 24/08/2025

**SINOPSE**
"Lucy nasceu numa ilha das Antilhas, o cenário de férias idílico para qualquer turista, mas que para ela nunca foi senão uma colónia refém do sol e da seca, uma prisão insuportável. A fim de quebrar as amarras e, ao mesmo tempo, libertar-se do amor sufocante da mãe e da cruel indiferença do pai, aos dezanove anos, Lucy decide partir para outra ilha, Manhattan, em busca de um presente e de um futuro só seus.

Começa, então, a trabalhar como au pair na casa de uma família de classe média. Bonitos, ricos e felizes, Lewis, Mariah e as suas quatro filhas aparentam ser a família perfeita. Porém, Lucy não tarda a aperceber-se das fendas naquela fachada supostamente impecável. É que, na opulenta e vibrante Nova Iorque, como em Antígua, a desolação pode reinar à volta de uma mesa posta.

Perseguida pelo passado, limitada pelas circunstâncias de ser uma mulher negra, Lucy procura na escrita o lugar onde pode ser o que deseja. Com um olhar perspicaz, entre a raiva e a compaixão, intolerante tanto para com os dominados como para com os dominadores, tentará então reinventar-se à luz de quem foi e de quem poderá vir a ser."
Este é um romance breve, mas intenso. 
A protagonista, Lucy, é uma jovem antilhana, que viaja para os EUA para trabalhar como "au pair". A história põe em confronto duas realidades: a do passado colonial e das marcas deixadas pela educação e tradição no seu país de origem, e a nova vida, num espaço aparentemente mais livre, mas igualmente carregado de tensões sociais, raciais e de género.
A protagonista não procura agradar; pelo contrário, questiona e rompe com as convenções. É uma leitura que inquieta, que confronta e questiona.
Confesso que esperava mais, que não consegui, de todo, compreender ou conhecer a protagonista, nem perceber todas as suas motivações, ou melhor, tudo o que se oculta por detrás das suas atitudes e da sua impulsividade. 

Carr, Garrett (2025). O Rapaz Que Veio do Mar.  Alfragide: Edições Leya.

Tradução: Ana Saldanha
N.º de páginas: 344
Início da leitura: 21/08/2025
Fim da leitura: 23/08/2025

**SINOPSE**
"Esta é a história de uma família, da comunidade de uma aldeia piscatória e de uma criança.
Estamos em 1973. Numa comunidade unida na costa oeste da Irlanda, um bebé é encontrado abandonado na praia. Batizado de Brendan por Ambrose Bonnar, o pescador que o adota, o rapaz tornar-se-á uma fonte de fascínio e esperança para uma comunidade apanhada na tempestade de um mundo em rápida mudança.
Ambrose, mais à vontade no mar do que em terra, acolhe Brendan em sua casa por amor. Mas é uma decisão que fraturará a sua família e forçará este homem a tentar compreender-se a si próprio e àqueles de quem cuida.
Ambientado ao longo de vinte anos, O Rapaz Que Veio do Mar, de Garrett Carr, é um romance sobre um rapaz inquieto a tentar encontrar o seu lugar no mundo. É uma exploração dos laços que nos fazem e nos unem, enquanto uma família e uma comunidade avançam irresistivelmente para o futuro."
Este romance juvenil combina realismo com o fantástico, explorando temas como identidade, a solidão, a aceitação e o poder da amizade.
A intriga começa com a chegada misteriosa de uma criança à costa de uma pequena e isolada comunidade marítima.
O ritmo acompanha o movimento das marés - ora calmo e contemplativo, ora intenso e comovente. Ideal para ser lido em silêncio, de preferência ao som das ondas. 
Confesso que esperava mais, talvez porque a premissa era realmente boa.  Ainda assim, aconselho.

Thompson, Kate (2025). O Clube dos Livros Proibidos. Porto: Singular.

Tradução: Mafalda Abreu
N.º de páginas: 420
Início da leitura: 17/08/2025
Fim da leitura: 21/08/2025

**SINOPSE**
«Em tempo de guerra, duas mulheres lutam para restaurar a esperança.
Em 1940, a Alemanha invade a Ilha de Jersey, transformando um local outrora pacífico e acolhedor numa prisão sem muros, mas com leis severas.
Os alemães ordenam a destruição de todos os livros existentes na ilha considerados uma ameaça ao regime nazi, mas Grace La Mottée, a única bibliotecária local, recusa-se a obedecer e decide escondê-los. Inspirada pelos leitores assíduos da biblioteca, Grace cria um clube de leitura que serve de escape à dura realidade que os ilhéus enfrentam. Ao mesmo tempo, Beatrice Gold, funcionária dos correios, contribui com uma outra forma de resistência.
À medida que a ocupação se prolonga, a presença dos alemães gera violência, perda e caos, e os pequenos atos de coragem das duas mulheres tornam-se mais arriscados – e mais essenciais – do que nunca.
Um tributo inesquecível ao amor pela leitura e ao poder dos livros, inspirado em histórias verídicas e inéditas da Segunda Guerra Mundial.»
Apesar de ser uma história ficcional, esta obra baseia-se em vários acontecimentos e pessoas reais e constitui uma homenagem às bibliotecas como espaços de resistência e de refúgio, em Dublin dos anos 60.
As personagens femininas são bem trabalhadas, fortes e muito corajosas.
A escrita é acessível, envolvente e humana, equilibrando momentos de dor e injustiça com outros de esperança, amizade e descoberta. Aconselho a leitura.

Donlea, Charlie (2025). A Rapariga Sem Passado. Lisboa: Editorial Presença. 

Tradução: Fátima Andrade
N.º de páginas: 400
Início da leitura: 15/08/2025
Fim da leitura: 16/08/2025

**SINOPSE**
"A verdade, quando revelada, pode ser mais mortal do que qualquer mentira.
Sloan Hastings, uma jovem patologista forense, submete o seu ADN num site de genealogia com um único objetivo: candidatar-se a uma bolsa de investigação. Na verdade, Sloan tem algumas reservas quanto à experiência: é adotada e nunca pensou procurar os seus pais biológicos.
Os testes de ADN revelam que Sloan é Charlotte Margolis, conhecida como Baby Charlotte, desaparecida misteriosamente com os pais, em 1995. Em busca de respostas, Sloan viaja até Cedar Creek, no Nevada, onde conhece a família biológica. Embora inicialmente acolhedores, os Margolis escondem segredos sombrios e nem todos parecem satisfeitos com aquele regresso. À medida que Sloan investiga o passado, percebe que há quem prefira que certas verdades permaneçam enterradas - mesmo que isso signifique matar."
A Rapariga Sem Passado, de Charlie Donlea, é um thriller psicológico que cumpre exemplarmente a promessa de agarrar o leitor desde as primeiras páginas e mantê-lo em tensão até ao desfecho. O autor constrói uma narrativa em que o suspense não surge de forma brusca, mas antes se desenvolve em crescendo, alimentando a curiosidade e a ansiedade a cada novo capítulo. Essa cadência é talvez um dos pontos mais fortes do livro: a sensação de que há sempre mais uma peça de um puzzle por descobrir, o que impele a leitura contínua e quase compulsiva.

A escrita é ágil e direta, sem excessos estilísticos, o que a torna particularmente apelativa para uma leitura de verão — leve no ritmo, mas intensa na emoção. Donlea sabe criar atmosferas de incerteza e desconfiança, explorando bem o impacto da memória, da identidade e da verdade oculta. Ao mesmo tempo, as personagens são desenhadas de forma suficientemente complexa para que a intriga não se limite à ação, mas também ao psicológico, contribuindo para o efeito global de inquietação.

Se por um lado não se trata de um romance inovador em termos de temática — uma jovem sem passado, marcada por segredos e um mistério que a envolve —, por outro, a forma como a intriga é conduzida e a escalada gradual do suspense fazem dele uma leitura viciante. 

Duarte, Nuno (2025). Pés de Barro. Lisboa: Leya. 

N.º de páginas: 312
Início da leitura: 11/08/2025
Fim da leitura: 13/08/2025

**SINOPSE**
"Estamos em 1962, num país orgulhosamente só, e vem aí a construção da primeira ponte suspensa sobre o Tejo, para a qual vão ser precisos cerca de três mil homens. A obra irá mudar para sempre a paisagem da capital, muito especialmente para quem vive em Alcântara, como é agora o caso de Victor Tirapicos, instalado na casa dos tios depois de ter envergonhado o pai com dois anos de cadeia só por ter roubado pão e batatas para fintar a miséria.

É, de resto, pelos olhos deste serralheiro de vinte e dois anos que veremos a ponte erguer-se um pouco mais todos os dias e, ali mesmo ao lado, partirem os navios cheios de rapazes para a guerra do Ultramar, donde muitos acabarão por voltar estropiados, endoidecidos ou mortos.

Porém, apesar de a modernidade parecer estar a matar a vida e os costumes do pátio operário onde convivem (amigavelmente ou nem tanto) uma série de figuras inesquecíveis - entre elas o mestre sapateiro que faz as chuteiras para o Atlético Clube de Portugal e um velho culto que aprende a desler -, Victor Tirapicos encontra o amor de uma rapariga que é muda mas consegue escutar o planeta, pressentindo a derrocada da estação do Cais do Sodré e outra catástrofe ainda maior, que se calhar tem pés de barro e só acontece neste romance, mas bem podia ter acontecido."


Pés de Barro, romance de estreia de Nuno Miguel Silva Duarte e vencedor do Prémio LeYa 2024, transporta-nos para o Portugal dos anos 60, mergulhando-nos no ambiente de Lisboa durante a construção da Ponte Salazar — hoje 25 de Abril — e nas partidas dos jovens para a guerra colonial. Este cruzamento entre progresso técnico e opressão política confere à narrativa uma força particular, tornando-a simultaneamente verosímil e emotiva.

O protagonista, Victor Tirapicos, é um jovem serralheiro que observa de perto a transformação da cidade e o peso das decisões do regime. Ao seu lado, circula um conjunto de personagens que dão vida ao retrato social da época: operários, vizinhos, familiares e figuras que, embora discretas, marcam profundamente o leitor.

Entre elas, destaco Dália, a jovem muda que vive no mesmo pátio. Incapaz de articular palavras, comunica através de um som muito próprio — um ruído gutural e quase musical que se repete sempre que quer pronunciar-se. Esse detalhe, longe de ser apenas uma curiosidade, transforma-se num poderoso recurso narrativo: Dália “ouve o mundo” com uma sensibilidade rara e, com o seu som, interrompe ou sublinha momentos-chave, como se fosse uma espécie de comentário subtil e não verbal à vida que decorre à sua volta.

A escrita de Nuno Duarte combina realismo social com ironia afiada, expondo as contradições de um país que ergue uma ponte monumental enquanto envia os seus jovens para uma guerra longínqua. A narrativa alterna entre momentos de humor e de dureza, e é justamente nessa tensão — entre a grande História e as pequenas histórias — que reside a sua riqueza.

Pés de Barro é, assim, muito mais do que uma obra sobre o passado: é um espelho de um tempo em que as promessas de modernidade coexistiam com um regime que sufocava a liberdade. A ponte que atravessa o Tejo acaba por ser também a ponte que liga o sonho e a realidade, a esperança e a perda.

Adorei e recomendo vivamente!

Kingslaey, Felicia (2025). Da Toscana com Amor. Lisboa: Marcador.

Tradução: Alberto Alves
N.º de páginas: 392
Início da leitura: 09/08/2025
Fim da leitura: 11/08/2025

**SINOPSE**

"Uma história divertida sobre relações, amor e coincidências que mudam a vida dos habitantes de uma pequena vila italiana. Os protagonistas, Elisa Benetti e Michael D’Arcy, são tão diferentes quanto possível, mas têm uma coisa em comum - ambos deixaram de acreditar no amor. No entanto, quando se reencontram na bela região da Toscana, depois de muitos anos, tem início uma série de situações engraçadas e comoventes.

O amigo de Michael, Charles Bingley, sobrinho do falecido conde Ricasoli, chega de Inglaterra para assumir a sua herança, a propriedade Le Giuggiole. A notícia gera uma onda de entusiasmo entre as potenciais sogras, dispostas a fazer tudo para casar as filhas com um dos jovens ricos.

No entanto, Elisa está completamente indiferente à caça ao marido. Na infância, passou todos os verões com os dois rapazes em Le Giuggiole, onde agora vive e produz vinho com paixão. Tenta perceber o que acontecerá ao vinhedo, já que Charles e Michael chegaram à Toscana com intenções pouco claras.

Muitos anos se passaram desde que Elisa e Michael eram amigos. As suas vidas mudaram. Será possível que agora se vão tornar inimigos?

E se, afinal, até os corações despedaçados se conseguirem abrir para o amor novamente?"
Mais uma vez fora da minha zona de conforto, optei, desta vez, por um romance mais leve e, por acaso, divertido. Ler Da Toscana, com Amor, de Felicia Kingsley, é como embarcar numa escapadinha romântica ao coração de Itália, com direito a vilarejos pitorescos, vinhedos dourados e personagens capazes de arrancar sorrisos. A autora, conhecida pelo seu toque leve e divertido, apresenta-nos Elisa Benetti e Michael D’Arcy, dois antigos conhecidos que o destino volta a colocar frente a frente, num reencontro repleto de atritos, mal-entendidos e uma boa dose de química. Inspirado livremente em Orgulho e Preconceito, o livro troca bailes vitorianos por festas na praça, intrigas sociais por fofocas de aldeia e longos salões de chá por paisagens de cortar a respiração. O resultado é uma comédia romântica que cumpre exatamente o que promete: entreter e transportar o leitor para um cenário ensolarado e cheio de vida. O humor é constante, com diálogos afiados e situações caricatas, desde confusões familiares até mexericos típicos de uma pequena comunidade. No entanto, quem procurar maior profundidade nas personagens ou um enredo mais denso poderá sentir que a narrativa, embora envolvente, se mantém à superfície, focada mais no riso fácil e na leveza do momento do que na introspeção. Ainda assim, essa é precisamente a sua força — é o tipo de história perfeita para levar na mala de férias, ler na praia ou numa esplanada, enquanto o sol aquece e o vento folheia as páginas. Da Toscana, com Amor é, acima de tudo, uma leitura de verão descomplicada, charmosa e capaz de fazer sonhar com o próximo destino.

Klune, TJ (2024). Por Baixo da Porta Sussurrante. Lisboa: Desrotina.

Tradução: Alexandra Cardoso
N.º de páginas: 424
Início da leitura: 08/08/2025
Fim da leitura: 10/08/2025

**SINOPSE**
"Bem-vindo à Travessia de Caronte, onde o chá está quente, os scones estão frescos e os mortos estão apenas de passagem.
Quando um Anjo da Morte vem buscar Wallace do seu próprio funeral, ele começa a suspeitar de que pode estar morto.
Quando Hugo, o dono de uma peculiar casa de chá, promete ajudá-lo a fazer a travessia, Wallace percebe que sim, está definitivamente morto.
Mas mesmo na morte, Wallace não se resigna a abandonar uma vida que sente mal ter vivido. Com uma semana para fazer a travessia, Wallace decide viver uma vida inteira em sete dias.
Hilariante, assustador e gentil, Por Baixo da Porta Sussurrante é uma história edificante sobre uma vida passada no escritório e uma morte passada a construir um lar."
TJ Klune volta a oferecer-nos uma narrativa que equilibra ternura, humor e melancolia, mas desta vez mergulhada numa atmosfera quase etérea. Por Baixo da Porta Sussurrante parte de uma premissa invulgar: Wallace Price, um homem frio e obcecado pelo trabalho, morre subitamente e é conduzido para uma casa de chá peculiar, ponto de passagem para quem precisa de aceitar o fim. É aqui, entre conversas, chás e silêncios carregados de significado, que Wallace começa a perceber o que significa, afinal, viver.

A escrita de Klune é acessível, calorosa e por vezes cinematográfica, criando imagens vivas e diálogos que alternam entre o cómico e o profundamente emotivo. O ritmo, contudo, poderá ser um desafio para alguns leitores — a narrativa prefere a contemplação à ação, e isso exige um leitor disposto a saborear o texto com calma, tal como se saboreia o chá na casa de Hugo, o barqueiro de almas.

Tematicamente, o livro explora a perda, a aceitação e a possibilidade de redenção, sem nunca cair num sentimentalismo forçado. Klune trata a morte não como um corte abrupto, mas como um processo — e, nesse sentido, oferece ao leitor uma visão reconfortante, quase terapêutica. 

Se A Casa no Mar Cerúleo era uma fábula sobre a inclusão e a diferença, Por Baixo da Porta Sussurrante é mais intimista, quase um sussurro literário. Não é um livro para quem procura grandes reviravoltas, mas sim para quem aprecia histórias que aquecem lentamente o coração e deixam uma sensação de companhia mesmo após a última página.
Apesar de não ser apreciadora de fantasia, reconheço qualidades nos livros deste escritor.

Maugham, W. Somerset (2020). Férias em Paris. Alfragide: Edições ASA.

Tradução: Elsa T. S. Vieira
N.º de páginas: 256
Início da leitura: 07/08/2025
Fim da leitura: 08/08/2025

**SINOPSE**

"Charley Mason tem vinte e três anos e um futuro promissor. Vem de uma família abastada, é atraente, refinado e acaba de completar os estudos em Cambridge. Espera-o uma carreira de prestígio seguindo as pisadas do pai. Mas para já, Charley tenciona gozar umas férias de Natal em Paris, ansioso por desfrutar de alguma liberdade na primeira viagem que faz sozinho à cidade das luzes.

Logo à chegada, porém, o jovem percebe que as suas expectativas não se vão concretizar. O seu melhor amigo, Simon Fenimore, jornalista correspondente na capital francesa, transformou-se num homem agressivo e vive agora em abstinência física e emocional. Numa ida a um bordel, Simon apresenta Charley a Lydia, uma jovem russa, vítima da revolução do seu país e em acelerado processo de autodestruição. A sombra da II Guerra Mundial agiganta-se sobre a Europa e os dias em Paris estão já tingidos com as cores da melancolia.

Quando regressa a Inglaterra, Charley já não é um jovem alegre e despreocupado. Ganhou a experiência de vida das ruas e do submundo. Perdeu a inocência. Pouco depois, o mundo perdê-la-ia também."
Ler Férias em Paris é um pouco como visitar um museu de arte clássica num dia de calor: reconhecemos o talento, admiramos o detalhe… mas a certa altura apetece procurar um banco e descansar. Maugham escreve com uma elegância demasiado britânica, como quem serve chá às cinco mesmo que ninguém o tenha pedido. As personagens estão muito bem construídas e o olhar do autor sobre a natureza humana é certeiro, mas o ritmo pausado e o tom contido deixaram-me à espera de um pouco mais de emoção. É, sem dúvida, literatura de qualidade — só talvez não seja a viagem mais empolgante para quem procura aventura a cada página.

Osman, Richard (2021). O Clube do Crime as Quintas-Feiras. Lisboa: Planeta.

Tradução: Rui Azeredo
N.º de páginas: 384
Início da leitura: 06/08/2025
Fim da leitura: 08/08/2025

**SINOPSE**
"Quatro reformados com alguns truques na manga
Uma polícia com o seu primeiro grande caso nas mãos
Um assassinato brutal
Bem-vindos a... O Clube do Crime das Quintas-feiras

Num pacato bairro de residências privadas para reformados, quatro amigos improváveis reúnem-se uma vez por semana para discutir crimes que ficaram por resolver.

Ron, um ex-sindicalista todo tatuado; a doce Joyce, uma viúva que não é tão ingénua quanto parece; Ibrahim, um ex-psiquiatra com uma incrível habilidade analítica; e a tremenda e enigmática Elizabeth, que lidera este grupo de investigadores amadores... ou nem por isso.

Quando um homicídio ocorre no pequeno bairro, e uma misteriosa fotografia é encontrada ao lado do cadáver, o clube vê-se envolvido no seu primeiro caso real. Embora sejam quase octogenários, os quatro amigos têm alguns truques na manga...

Será que este gangue pouco convencional, mas brilhante, irá conseguir apanhar o assassino antes que seja tarde demais? O melhor é nunca subestimar um grupo de velhotes."
Esta obra apresenta uma abordagem refrescante ao romance policial contemporâneo, com uma combinação curiosa de leveza, humor britânico e mistério clássico. A premissa já cativa de início: um grupo de idosos residentes num pacato lar de repouso que se reúne semanalmente para discutir crimes não resolvidos — até que um assassinato real acontece nas redondezas e o grupo decide investigar.
Richard Osman constrói uma narrativa que se destaca pelo tom bem-humorado e pela afeição evidente com que retrata os seus protagonistas. Ao contrário de muitos thrillers e policiais mais sombrios e violentos, aqui há uma aposta clara numa narrativa mais leve, quase aconchegante, ainda que o tema central seja o crime.
O ponto forte do romance reside nas suas personagens: Joyce, Elizabeth, Ibrahim e Ron são figuras bem delineadas, com vozes distintas e passados intrigantes. A idade avançada dos protagonistas é tratada sem paternalismo, com espaço para humor, sagacidade e até uma certa melancolia — o que confere alguma profundidade emocional à obra. A alternância de pontos de vista e o uso do diário de Joyce como recurso narrativo dão ritmo e variedade à leitura.
Do ponto de vista do enredo policial, o mistério é engenhoso o suficiente para manter o leitor curioso, embora o foco principal não esteja tanto na complexidade do crime em si, mas na dinâmica entre os personagens e na crítica social subtil — que toca, por exemplo, em temas como o envelhecimento, a solidão e a forma como a sociedade trata os mais velhos.

Kliewer, Marcus (2025). Nós Já Vivemos Aqui. Porto: Singular.
Tradução: Célia Correia Loureiro
N.º de páginas:320
Início da leitura: 06/08/2025
Fim da leitura: 07/08/2025

**SINOPSE**
"NOMEADO PARA OS GOODREAD CHOICE AWARDS
«Quando parecia estar tudo bem, isso significava apenas que havia muito que podia correr mal.»
Nesta arrepiante estreia de Marcus Kliewer, as vidas de duas mulheres são viradas do avesso quando recebem uma inesperada visita.
Charlie e Eve acabam de comprar uma casa antiga numa zona pitoresca, e estão certas de que fizeram um excelente negócio. Quando estão a trabalhar na renovação, alguém bate à porta. É um homem, com a família, que diz ter vivido ali alguns anos antes; pergunta se pode mostrar a casa aos filhos. Eve, incapaz de dizer um não, deixa-os entrar.
A partir desse momento, começam a ocorrer coisas inexplicáveis, como o desaparecimento da filha mais nova e uma presença fantasmagórica na cave. Mais estranho ainda, a família não dá sinais de querer terminar a visita.
Há algo de muito errado com a casa e aquela família – ou será que Eve está a imaginar coisas?
Um thriller irresistível que promete causar muitos calafrios e que será em breve adaptado a filme pela Netflix."
Terminada a leitura de Nós Já Vivemos Aqui, de Marcus Kliewer, confesso: saí dela com sentimentos mistos. Por um lado, a proposta me pareceu intrigante e original. Por outro, achei o livro confuso, com momentos que soaram despropositados e desconexos. E é exatamente sobre essa ambivalência que quero refletir aqui.

Este é um livro que nasceu na internet, mais especificamente no Reddit, e traz consigo a estética do “terror moderno” — carregado de atmosferas densas, realidades distorcidas e uma sensação constante de que algo está profundamente errado, mesmo quando nada é dito diretamente.

A premissa é boa: um casal muda-se para uma cabana isolada, e logo percebe que algo ali não bate certo. Portas que surgem do nada, vizinhos com comportamentos estranhos, eventos que parecem repetir-se... A sensação de paranoia e de perda de controlo sobre a própria realidade é quase palpável. Kliewer trabalha bem essa tensão inicial — mas é na evolução da narrativa que começam os tropeços.

A estrutura do livro é fragmentada, e embora isso seja intencional (talvez para espelhar a desorientação das personagens), acaba por comprometer o envolvimento emocional. Há cenas que parecem inseridas apenas para chocar ou manter o clima de estranheza, mas que não contribuem efetivamente para o desenvolvimento da história. Em certos momentos, senti-me mais confusa do que intrigada, tentando entender se havia algo que eu estava a "perder" — ou se a confusão fazia parte da proposta.

No entanto, ao refletir depois da leitura, percebo que talvez esse seja o ponto: o livro parece mais interessado em evocar sensações (como a angústia, o medo e a alienação) do que em contar uma história com lógica tradicional. Se o lermos como uma metáfora para traumas ou para a perda de identidade, tudo começa a fazer um pouco mais de sentido.

Ainda assim, não posso ignorar que, como experiência de leitura, houve momentos em que o texto me perdeu. A atmosfera é eficaz, sim, mas a execução narrativa deixa a desejar. É um daqueles livros que dividem opiniões: ou se aceita entrar no jogo e flutuar nas entrelinhas, ou se sai da leitura com a sensação de que muito foi prometido e pouco foi entregue.

Towles, Amor (2025). Mesa para Dois. Alfragide: Publicações Dom Quixote.

Tradução: Francisco Silva Pereira
N.º de páginas: 528
Início da leitura: 04/08/2025
Fim da leitura: 06/08/2025

**SINOPSE**
"É com Pushkin que começa este livro - não o famoso escritor, mas antes um camponês, também ele uma espécie de poeta, que por amor à mulher (uma deslumbrada comunista) se muda para Moscovo em 1918. Na grande metrópole, descobre os limites da revolução proletária (é despedido num ápice) e o rosto da nova Rússia: falta tudo, o pão, o leite, os medicamentos… Sem desanimar, encontra um novo afazer, guardar lugar nas filas. E é graças ao seu talento que, após várias peripécias, acaba por partir para Nova Iorque no fim de 1929. Nada é inocente na escrita de Amor Towles. O facto de a primeira história começar na Rússia e acabar nos Estados Unidos estabelece a ponte entre este livro e os dois primeiros romances do autor: As Regras da Cortesia (Nova Iorque, anos 30) e Um Gentleman em Moscovo (que arranca no despontar da União Soviética).

Estabelece ainda outro paralelo. As cinco histórias que se seguem, embora ambientadas em Manhattan, são herdeiras de Gogol, Tchékov ou até Pushkin, eivadas pela mesma deriva moral, pelo existencialismo, a duplicidade, o vício, o amor ao belo. É também este universo que o autor transporta para o breve romance que encerra este livro: Eve em Hollywood. Aqui, Amor Towles recupera uma das suas grandes criações, Evelyn Ross, que perdêramos de vista em As Regras da Cortesia. A personagem, de estonteante beleza, rasgada por uma profunda cicatriz, reaparece agora em Los Angeles, em 1938. E com ela redescobrimos o noir americano, pisamos o terreno antes trilhado por Chandler - não na pista de um crime, mas como investigadores dos profundos recessos da alma humana. Mesa para Dois é isto, seis contos e uma novela que nos devolvem um dos mais extraordinários escritores americanos contemporâneos, no auge do seu talento narrativo."
Com um estilo sofisticado, preciso e profundamente cinematográfico, Towles conduz-nos por seis histórias ambientadas em Nova Iorque e uma novela final, passada em Hollywood, numa homenagem clara ao espírito e estética dos anos dourados do cinema.
Neste livro, oferece-nos um retrato da alma americana — não tanto pela grandiosidade dos acontecimentos, mas pelo detalhe subtil dos gestos e escolhas que moldam os destinos individuais.
Towles move-se com mestria entre personagens aparentemente banais, revelando, com acutilância e graça, os dramas e contradições que habitam os seus quotidianos. Há uma elegância latente na sua escrita que, sem nunca resvalar para o exibicionismo literário, nos recorda que estamos perante um autor que respeita profundamente a inteligência e a sensibilidade do leitor.
O conto que dá título ao livro — «Mesa para Dois» — é particularmente boa, oferecendo uma reflexão mordaz sobre ambição, destino e identidade. Towles tem uma capacidade rara de construir personagens complexas em poucas páginas, e fá-lo com diálogos vivos, uma ironia discreta e um domínio absoluto do ritmo narrativo.
A novela final, “Eve in Hollywood”, é quase um livro dentro do livro — um épico contido, que remete para os ecos de Fitzgerald e de Capote, onde o glamour serve de pano de fundo para dilemas morais e encontros inesperados.
Quem nunca leu nada do autor, não pode mesmo deixar de ler, este e os anteriores.

Novo, Isabel Rio (2025). A Matéria das Estrelas. Alfragide: Publicações Dom Quixote.

N.º de páginas: 192
Início da leitura: 03/08/2025
Fim da leitura: 04/08/2025

**SINOPSE**

"Na manhã do dia 21 de janeiro de 1971, o guarda-marinha Jacinto da Silva Fernandes não comparece à chamada do navio-patrulha Flamínio, pronto a largar do porto de Ponta Delgada. O jovem oficial será encontrado na casa que arrendava na cidade, deitado por terra, inanimado.

O trágico e misterioso incidente suspende o percurso de um jovem cujas qualidades e aspirações pareciam talhá-lo para a carreira dos mares. Ao mesmo tempo, marca o início de uma investigação, conduzida por Eduardo, médico e familiar dos Silva Fernandes, que traçará a história de Jacinto, desde a sua infância até à sua sobrevivência arrastada como deficiente, passando pelos dias anteriores ao incidente.

Revolvendo os rastos e os indícios deixados pelo jovem (fotografias, cartas, livros, amigos), na ânsia de encontrar respostas, Eduardo confrontar-se-á com segredos abafados e revelações dolorosas, que expõem hipocrisias que são, também, as de Portugal nas décadas de 60 e 70 do século passado. E compreenderá que, mais do que a procura da verdade sobre Jacinto, está no fundo a conduzir uma pesquisa existencial.

Obra de um notável fôlego narrativo, servida por uma linguagem apuradíssima, segundo o júri que o premiou, o romance A Matéria das Estrelas traz o registo inconfundível de uma das grandes vozes da literatura portuguesa contemporânea."
Isabel Rio Novo oferece-nos, em A Matéria das Estrelas, uma narrativa profundamente sensível e estruturalmente ousada, que se distingue tanto pela elegância da escrita como pela inteligência da construção narrativa. O romance, centrado na figura do astrofísico Carlos Ribeiro — figura real, pouco conhecida do grande público — é muito mais do que uma biografia ficcionada. É uma meditação sobre a memória, a ciência, a perda e, acima de tudo, sobre o desejo de permanência num mundo em constante desaparecimento.

Um dos aspectos que mais me cativou foi precisamente a estrutura fragmentada, em que diferentes momentos da história se entrelaçam com fluidez. Cada capítulo inicia com uma carta do protagonista aos pais, espécie de fio condutor emocional que nos ancora, mesmo quando o tempo e o espaço da narrativa se tornam mais complexos. Essas cartas, por vezes poéticas, por vezes desesperadas, criam uma intimidade pungente que aproxima o leitor de um homem dividido entre o rigor da ciência e a fragilidade da condição humana.

A alternância entre tempos narrativos — infância, juventude, exílio, últimos anos — obriga-nos a uma leitura atenta e contínua. Não é um livro para se ler aos bocados: o risco de nos perdermos na teia cuidadosamente construída é real. Mas é também esse o seu encanto. Há um prazer quase cinemático em ver as peças encaixarem, à medida que os diferentes planos temporais se refletem e comentam mutuamente.

Isabel Rio Novo escreve com um apurado estilo, que nunca se sobrepõe à emoção. O vocabulário é preciso, a linguagem depurada, mas cheia de subtileza — há silêncios e entrelinhas que dizem tanto como as palavras. Esta contenção é, aliás, uma das grandes forças do livro.

Nesta obra, não há heróis fáceis nem finais redentores. O que encontramos é a tentativa de um homem — e de uma autora — de olhar o passado com verdade, sem o romantizar. O resultado é um romance comovente e exigente, que merece ser lido com a atenção que pede. Um livro que, tal como as estrelas, continua a brilhar muito depois de o fecharmos.

Aconselho, a quem gosta do género.

Paris, B.A. (2025). A Hóspede. Lisboa: Editorial Presença.

Tradução: Ana Saldanha
N.º de páginas: 320
Início da leitura: 01/08/2025
Fim da leitura: 03/08/2025

**SINOPSE**
"Até onde pode ir a hospitalidade antes de se tornar uma ameaça?
Iris e Gabriel acabam de chegar de umas férias inesquecíveis. Contudo, ao abrirem a porta, são surpreendidos com uma visita inesperada. Uma das suas melhores amigas, Laure, está instalada em sua casa - a dormir na cama do casal, a vestir as roupas de Iris e até a reorganizar a mobília.

Laure acabou de descobrir que o marido tem uma filha fora do casamento e procura refúgio junto dos amigos. Iris e Gabriel querem apoiá-la, mas, rapidamente, o humor de Laure torna-se imprevisível e a sua presença, sufocante e perturbadora.

Com a chegada de novos vizinhos e de um desenvolvimento com um passado duvidoso, o ambiente transforma-se num campo minado de tensão e desconfianças.

Há segredos prestes a serem desvendados, alguns mais perigosos do que eles poderiam imaginar e capazes de abalar até as amizades mais sólidas."
Este livro segue o estilo característico de B. A. Paris: suspense psicológico com ritmo rápido e reviravoltas. A história gira em torno de uma mulher, Iris, e do seu marido Gabriel, que recebem uma amiga em sua casa — a tal hóspede — e, a partir dessa circunstância, segredos e tensões começam a emergir. A narrativa vai revelando camadas ocultas da vida dos personagens, mantendo o leitor na dúvida sobre em quem confiar.

A leitura é fluída e rápida, o clima de tensão bem construído e considero que houve uma boa exploração de segredos familiares e dilemas morais. O final é surpreendente.

Ainda assim, penso que as personagens tomam, por vezes, decisões pouco críveis.
É um livro leve, ideal para uma leitura rápida em dias de verão.
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Professora de português e professora bibliotecária, apaixonada pela leitura e pela escrita. Preza a família, a amizade, a sinceridade e a paz. Ama a natureza e aprecia as pequenas belezas com que ela nos presenteia todos os dias.

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