Duarte, Nuno (2025). Pés de Barro. Lisboa: Leya.
N.º de páginas: 312Início da leitura: 11/08/2025
Fim da leitura: 13/08/2025
**SINOPSE**
"Estamos em 1962, num país orgulhosamente só, e vem aí a construção da primeira ponte suspensa sobre o Tejo, para a qual vão ser precisos cerca de três mil homens. A obra irá mudar para sempre a paisagem da capital, muito especialmente para quem vive em Alcântara, como é agora o caso de Victor Tirapicos, instalado na casa dos tios depois de ter envergonhado o pai com dois anos de cadeia só por ter roubado pão e batatas para fintar a miséria.
É, de resto, pelos olhos deste serralheiro de vinte e dois anos que veremos a ponte erguer-se um pouco mais todos os dias e, ali mesmo ao lado, partirem os navios cheios de rapazes para a guerra do Ultramar, donde muitos acabarão por voltar estropiados, endoidecidos ou mortos.
Porém, apesar de a modernidade parecer estar a matar a vida e os costumes do pátio operário onde convivem (amigavelmente ou nem tanto) uma série de figuras inesquecíveis - entre elas o mestre sapateiro que faz as chuteiras para o Atlético Clube de Portugal e um velho culto que aprende a desler -, Victor Tirapicos encontra o amor de uma rapariga que é muda mas consegue escutar o planeta, pressentindo a derrocada da estação do Cais do Sodré e outra catástrofe ainda maior, que se calhar tem pés de barro e só acontece neste romance, mas bem podia ter acontecido."
Pés de Barro, romance de estreia de Nuno Miguel Silva Duarte e vencedor do Prémio LeYa 2024, transporta-nos para o Portugal dos anos 60, mergulhando-nos no ambiente de Lisboa durante a construção da Ponte Salazar — hoje 25 de Abril — e nas partidas dos jovens para a guerra colonial. Este cruzamento entre progresso técnico e opressão política confere à narrativa uma força particular, tornando-a simultaneamente verosímil e emotiva.
O protagonista, Victor Tirapicos, é um jovem serralheiro que observa de perto a transformação da cidade e o peso das decisões do regime. Ao seu lado, circula um conjunto de personagens que dão vida ao retrato social da época: operários, vizinhos, familiares e figuras que, embora discretas, marcam profundamente o leitor.
Entre elas, destaco Dália, a jovem muda que vive no mesmo pátio. Incapaz de articular palavras, comunica através de um som muito próprio — um ruído gutural e quase musical que se repete sempre que quer pronunciar-se. Esse detalhe, longe de ser apenas uma curiosidade, transforma-se num poderoso recurso narrativo: Dália “ouve o mundo” com uma sensibilidade rara e, com o seu som, interrompe ou sublinha momentos-chave, como se fosse uma espécie de comentário subtil e não verbal à vida que decorre à sua volta.
A escrita de Nuno Duarte combina realismo social com ironia afiada, expondo as contradições de um país que ergue uma ponte monumental enquanto envia os seus jovens para uma guerra longínqua. A narrativa alterna entre momentos de humor e de dureza, e é justamente nessa tensão — entre a grande História e as pequenas histórias — que reside a sua riqueza.
Pés de Barro é, assim, muito mais do que uma obra sobre o passado: é um espelho de um tempo em que as promessas de modernidade coexistiam com um regime que sufocava a liberdade. A ponte que atravessa o Tejo acaba por ser também a ponte que liga o sonho e a realidade, a esperança e a perda.
Adorei e recomendo vivamente!
divulgação - leituras
divulgação de livros
literatura portuguesa
opinião
prémio Leya
sugestões de leitura
0 Comentarios