Misericórdia, Lídia Jorge

Jorge, Lídia (2022). Misericórdia. Alfragide: Publicações Dom Quixote.

Nº de páginas: 464

Início da leitura: 01/12/2022

Fim da leitura: 03/12/2022

**SINOPSE**

«Misericórdia é um dos livros mais audaciosos da literatura portuguesa dos últimos tempos. Como a autora consegue que ele seja ao mesmo tempo brutal e esperançoso, irónico e amável, misto de choro e riso, é uma verdadeira proeza.

Não são necessárias muitas palavras para apresentá-lo - o diário do último ano de vida de uma mulher incorpora no seu relato o fulgor das existências cruzadas num ambiente concentracionário, e transforma-se no testemunho admirável da condição humana.

Isso acontece porque o milagre da literatura está presente. Nos tempos que correm, depois do enfrentamento global de provas tão decisivas para a Humanidade, esperávamos por um livro assim. Lídia Jorge escreveu-o.»
Que livro tão bom! É difícil explicar os sentimentos que despertou em mim, mas não foram poucos. Emocionou-me com uma intensidade como há muito não o fazia um livro. Talvez até por saber que este foi um livro que a mãe da autora lhe pediu que escrevesse antes de morrer. Como referiu a própria escritora,  "Pediu-me que escrevesse um livro chamado ‘misericórdia’, para que se tivesse compaixão pelas pessoas e as tratássemos como se fossem pessoas na plenitude da vida”. Não pretendeu escrever um livro piegas, sobre a morte, mas sim "um livro sobre a vida, absolutamente; sobre o esplendor da vida que acontece quando as pessoas estão para partir, foi isso que eu verifiquei - os atos de resistência magníficos, que as pessoas têm no fim da vida”.
Esta mãe tem tanto do que tinha a minha própria mãe, que era como se a revisse neste Hotel Paraíso (se tivesse vivido para além dos escassos 55 anos). 
É pela voz de D. Alberti, Maria Alberta, que conhecemos o Hotel Paraíso, um Lar de Idosos. E, apesar da sua fraca mobilidade, que a fazia deslocar-se na sua cadeira de rodas, é de uma lucidez incrível, de uma força, de uma coragem, de um otimismo que nos enche a alma, nos comove e surpreende.
Esta personagem não nos conduz apenas pelo espaço exterior, mas pelos seus pensamentos, as suas divagações, os seus sentimentos, as suas resistências e renitências e os seus apoquentos. 
Foi sempre uma mulher que gostou de ler, de viajar através do globo que tinha em casa, de saber, de conhecer. Por isso mesmo, se deixa cativar pelo leitor que passava de quando em quando pelo Lar, cuja voz e forma de ler, tinha o poder de o tornar belo, ele que não tinha sido bafejado pela beleza natural. 
Ainda que gostasse de histórias com finais felizes e o aconselhasse à filha (escritora), de quem considerava que as histórias que escrevia eram sempre tristes, tinha uma perceção muito real e despojada das coisas: "Quando aqui cheguei e vi setenta pessoas sentadas, imóveis, caladas, passando-lhes por cima a bênção da tevê, desejei que viesse uma peste invisível que nos levasse a todos ao mesmo tempo, saltando, de mãos dadas, para o outro lado desta praia."
Através dela, conhecemos os cuidadores, as suas origens, a forma como as suas mãos tratavam os mais velhos; os restantes moradores do Lar, as suas inquietações, a sua clausura, os desaparecimentos quase diários dos que, entretanto, iam morrendo, para dar lugar a novos residentes.
Através dela, conhecemos melhor a noite e a forma desafiadora como esta tratava a nossa protagonista, que se recusava a engolir os comprimidos que lhe davam para sossegar. Mas também conhecemos a forma como D. Alberti ousava enfrentar a noite, não lhe cedendo, até ao fim. E nestas suas constantes conversas e confrontos com a noite, chega a explicar-lhe que "O além é um lugar onde se guardam para sempre as trouxas com os bens mais preciosos da nossa vida." O além é um livro e "Um livro não tem fim, cada página uma vida, cada vida uma página, quantas mais vidas mais páginas. Isso é o além."
Aconselho vivamente a leitura deste livro magnífico.

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