Mãe, Valter Hugo (2020). A Desumanização. Porto: Porto Editora.
Nº de páginas: 248
Início da
Leitura: 29/07/2022
Fim da Leitura:
31/07/2022
**SINOPSE**
“Mais
tarde, também eu arrancarei o coração do peito para o secar como um trapo e
usar limpando apenas as coisas mais estúpidas.”
Desumanização
Passado nos recônditos fiordes islandeses, este romance é a voz de uma menina diferente que nos conta o que sobra depois de perder a irmã gémea. Um livro de profunda delicadeza em que a disciplina da tristeza não impede uma certa redenção e o permanente assombro da beleza.
Não
sendo um livro fácil, é um livro completo. Um livro de um lirismo pungente,
dolorosamente belo, escrito de forma fenomenal, tão ao jeito de Valter Hugo Mãe,
que nos fala da dor da perda, que conduz à morte, à inveja, à dor, à
atrocidade...
A
narradora, Halldora, é uma criança de 12 anos, que vive nos fiordes da Islândia
e que é constantemente confrontada com a perda umbilical da sua irmã gémea,
Sigridur. Esta morte vem dominar toda a família, despedaçá-la.
Do
pai, que foi sempre o seu maior companheiro, um poeta que vai mediando a
relação desta com a mãe, pouco resta.
Da
mãe, ficou um ser insano, agressivo e que vai massacrando a filha de forma
totalmente desumana. Afinal, até onde pode ir uma mãe que perde um filho? “Quem
sepulta um filho não tem idade”.
De
Halldora, restou um coração que deseja arrancar do peito para “secar como um
trapo e usar limpando apenas as coisas mais estúpidas”. Halldora sente uma
profunda relação com a terra, a mesma em que está enterrada a irmã, porque ela
é “a metade menos morta da criança plantada” e “A terra estava infestada de
seres matadores, invejosos, gulosos da felicidade dos outros”. “A morte é um
exagero. Leva demasiado. Deixa muito pouco.”
Deixo
algumas passagens verdadeiramente surpreendentes, para além das que já fui
referindo:
“Os
livros eram ladrões. Roubavam-nos do que nos acontecia. Mas também eram
generosos. Ofereciam-nos o que não nos acontecia…”
“Pensava
que os livros eram animais de barriga imensa para onde caíam os leitores,
puxados por textos inquinados, maquiavélicos, feitos de malícias, maldades,
mentiras, deturpações, transformações do que era certo em condutas erradas. Os
livros tinham presas e dentes afiados e comiam gulosamente as pessoas. Não ler,
era como fechar os olhos, fechar os ouvidos, perder sentidos. As pessoas que
não liam não tinham sentidos. Andavam como sem ver, sem ouvir, sem falar. Não sabiam
sequer o sabor das batatas. Só os livros explicavam tudo. As pessoas que não
leem apagam-se do mapa de deus.”
E
um excerto da nota do autor: "Quando nasci já o meu irmão Casimiro havia
falecido. Durante a infância imaginava-o à minha imagem, um menino crescendo
como eu, capaz de conversar comigo partilhando os mesmos interesses. Sabia
embora, que estava deitado sob a terra, e pensava que a palavra coração era da
família da palavra caroço, uma semente. Achava que os meninos mortos faziam
nascer pessegueiros porque os pêssegos tinham pele. O primeiro pêssego que comi
foi em idade adulta."
Aconselho
vivamente!
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