O Quarto do Bebé, Anabela Mota Ribeiro

Ribeiro, Anabela Mota (2023). O Quarto do Bebé. Lisboa: Quetzal Editores.

Nº de páginas: 280
Início da leitura: 22/08/2023
Fim da leitura: 24/08/2023

**SINOPSE**
Escrito em grande parte durante o confinamento e a doença, e concluído após uma longa gestação, O Quarto do Bebé é um romance autoficcional em forma de diário íntimo.

Depois da morte de um conhecido psicanalista, a filha, sua única herdeira, encontra entre os papéis que ele deixou o diário de uma paciente. Tem título - Fala Orgânica - e está assinado: Ester do Rio Arco. O que começou por ser uma curiosidade transformou-se numa obsessão e objeto de leitura compulsiva. Neste manuscrito, a filha do psicanalista vai encontrar não apenas uma forma de conviver com o pai, como também inúmeros pontos de identificação com a paciente dele.

Os temas são os do dia a dia do isolamento e da doença, a escrita, o corpo, a mutilação, a relação com a mãe e com as origens, a ligação profunda a uma amiga (figura tutelar e espécie de mãe de Ester) e a morte dela. Em suma, a perda, a infertilidade, maternidade e filiação, nascimento e morte. O arco narrativo desenha-se a partir do que poderia vir a ser um quarto de bebé, mas que nunca albergará uma criança, até à transformação desse quarto num lugar físico e mental de criação, nomeadamente da escrita.

Daqui emerge ainda um retrato antropológico do país em que os pais estiveram na guerra e as mães escreveram aerogramas, e é exposta a violência que a sociedade patriarcal exerce sobre as mulheres. Com ecos do universo literário da recentemente nobelizada Annie Ernaux, uma das grandes referências da autora, O Quarto do Bebé é um relato cru e corajoso que revela uma nova e envolvente faceta de Anabela Mota Ribeiro.
Que livro! Intenso, alternando entre passagens poéticas e coloquiais, num constante diálogo com o leitor, um diálogo cru e nu, em que, como diz o narrador, "Escrever é fazer um pão. É dar forma ao medo, torná-lo comestível, ser capaz de o cuspir." ou "Escrever é conseguir estar nua, desorbitada, fora do tempo cronológico. É avançar nua e intrépida, E sem vergonha, que é o mais difícil." Difícil ou não, a autora conseguiu-o, atingiu-me, abanou-me, fez-me pensar e colocar-me na pele da protagonista (afinal, quem já teve familiares a passar pelo cancro, consegue mais facilmente entender que, muitas das questões que a personagem foi levantando, ao longo da progressão da doença, são credivelmente fáceis de compreender como real, como um processo normal). Quando se tem uma doença oncológica que vai invadindo uma pessoa até a tornar num ser vegetativo, é normal que se sinta "perseguida pelo luto."
Esta protagonista feminina, que teve um passado de pobreza, que conseguiu sonhar, inverter por pouco que fosse, o percurso da vida, diz-nos, enquanto narradora, que "a maior parte das mulheres sofre na sua vida alguma espécie de violência sexual, psicológica, moral. E não conta. Carrega os seus túmulos em vida, como se não fosse nada." Ora, já era tempo de ser feliz do que ver a sua vida, durante a pandemia por COVID, invadida por uma doença que a persegue "como uma sombra".
Com poucas possibilidades de ter um bebé, sente-se, muitas vezes regredir à posição fetal, ao momento em que foi ela própria um bebé. Na impossibilidade de gerar um bebé, acredita que o seu filho é o diário que está a escrever. "A escrita de um diário é a célula primordial, dá som ao silêncio, ao inexprimível, alumia a escuridão. Escrever é ser capaz de gerar".
A presença da metaliteratura, também nos aguça a curiosidade, que fiquei com interesse em ler alguns dos livros mencionados (outros, como já li, melhor compreendi as associações feitas) e até analisados em comparação com os acontecimentos que marcam a vida da protagonista.
Gostei muito e aconselho vivamente.

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